Uma das principais críticas literárias do país, autora lança 'Coros, contrários, massa', seu primeiro livro em 10 anos
Por Bolívar Torres
Há reflexões que acompanham a vida de um pesquisador por muitos anos. Uma das maiores críticas literárias do país, Flora Süssekind levou uma década para reunir em livro os seus anseios intelectuais mais recentes. O resultado é “Coros, contrários, massa” (Cepe), que põe fim a uma longa espera por lançamentos da professora e pesquisadora. Com 20 textos ampliados e dois ensaios inéditos, o livro explora diversos desdobramentos sobre a questão do coro, ao qual a autora vem se dedicando.
Na construção do pensamento crítico de Flora, o coro é uma chave para entender as multiplicidades de vozes que formam a nossa experiência contemporânea. A autora mira o inquieto horizonte cultural e político, sem tirar os olhos do retrovisor. Sobrepondo passado e presente, cinema, artes plásticas e literatura, vai de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector às tirinhas de André Dahmer, passando pela produção de escritores da atualidade como Veronica Stigger e Angélica Freitas.
Contracoro
O livro chega um ano após a polêmica saída da autora da Casa de Rui Barbosa, onde ela atuou como pesquisadora por quase quatro décadas. Era o auge da tensão entre os servidores e a presidente da entidade, Letícia Dornelles. Ao ser empossada, em 2019, ela exonerou de seus cargos Flora e outros quatro chefes de pesquisa. Flora poderia ter ficado, mas resolveu se aposentar da Casa Rui.
— É claro que a conjuntura política do país teve papel decisivo na demora (em lançar o livro) — conta Flora. — Eu perdi um coro de que fazia parte desde bem jovem, o centro de pesquisa da Casa Rui. Isso é muito forte, claro. Mas senti sobretudo necessidade de observar o que aconteceria no Brasil sob um governo de extrema-direita, de observar os coros da ultradireita. E contrastá-los aos contracoros trabalhados em experiências artísticas que, nesse contexto, se imporiam com inteligência crítica e autonomia. Assim como ao desânimo, à paralisia, à espera que acometeriam a muitos de nós.
A saída da pesquisadora da instituição provocou comoção no meio intelectual. Aluna de Silviano Santiago e Luiz Costa Lima nos anos 1970, vencedora do Jabuti nos anos 1980, Flora marcou época dando aula na PUC-Rio, na UFF e na Unirio, onde trabalha até hoje. É responsável por estudos originalíssimos sobre o fascínio pela técnica e as escrituras sonoras (“Cinematógrafo de letras”, 1987) e o relato de viagem (“O Brasil não é longe daqui”, 1990). Para muitos, ela revolucionou os estudos de Letras na universidade.
— Flora surgiu como crítica num momento em que vai se consolidando a substituição da imprensa pela universidade como principal espaço do debate literário no Brasil — observa o editor e pesquisador Miguel Conde, professor adjunto de Teoria Literária na UFRJ. — Ela soube criar um modo de atuação que unia de maneira muito particular o rigor da pesquisa acadêmica ao ímpeto do debate público.
Literatura de atrito
“Coros, contrários, massa” não foge do debate. Nos ensaios focados na experiência histórica presente, a autora aponta um tema que não poderia ser mais atual: o “esgarçamento” do pacto social formulado a partir da Nova República, que vem tornando a convivência democrática cada vez mais difícil. O contexto da nova produção, resume Flora, é de “uma politização mais enfática nas formas de intervenção cultural frente à expansiva investida conservadora” no país.
Esse cenário traz um duplo efeito. Se, por um lado, parece inviabilizar uma convergência entre os artistas, por outro promove uma multiplicação de manifestações culturais marcadas por um “tensionamento de forças contrárias”. É aí que surge a coralidade, que se dá por “desacordos internos”, “forças desarmônicas”, uma “disjunção quase audível” e outros termos que remetem a atrito, descontinuidade e contradição.
— As coralidades proliferam exatamente quando o coro parece não estar mais lá. Não parecem emergir de uma comunidade, mas exatamente de sua falta — explica Flora. — Os experimentos corais que funcionam como processos e lugares de transformação me interessaram particularmente. Procurei observar essas manifestações, por exemplo, em figurações cruentas das classes médias realizadas por (escritores como) Vilma Arêas e André Sant’Anna, e em certas trajetórias individuais movidas por variação interna metódica, como em (poetas como) Augusto de Campos, Carlito Azevedo, Lu Menezes.
O passado como farsa
Flora busca entender como o país irrompeu nas manifestações culturais recentes. Com o impeachment de Dilma Rousseff, recursos artísticos como o looping e o espelhamento evocam a repetição histórica e um passado que volta como farsa. Na nossa década de 2020, em obras de Grace Passô, Giselle Beiguelman e Nuno Ramos, a figura do parasita aparece com força para iluminar uma época de “fortíssimo potencial destrutivo”.
Ela identifica ainda um esforço estético (as "epifanias negativas") que se contrapõe a um "projeto cultural totalitarizante e sem dimensão autorreflexiva de país", definido por ela como "mística verde-amarela". Outro ponto é a ideia de exílio provocada pelo desconforto crescente em relação às exclusões estruturais do país. Chama a atenção de Flora a retomada da “Canção do exilio” de Gonçalves Dias por Angélica Freitas em um poema sobre recente ataque policial a cavalo a professores grevistas em Porto Alegre.
— Eu cheguei a pensar em retomar um texto mínimo que publiquei há muitos, que chamava Exílios, e desenvolvê-lo melhor nesse livro — diz Flora. — Talvez faça isso depois. Nesse texto eu examinava o exílio em dois autores não exilados, Ana Cristina Cesar e Paulo Leminski. Nos últimos anos me chamou a atenção a retomada inesperada da canção do exílio por Angélica Freitas em poema sobre recente ataque policial a cavalo a professores grevistas em Porto Alegre. Mas há exílio igualmente em certas geografias de desenho propositadamente difuso, pautadas pela indeterminação metódica, como em trabalhos de Luiza Baldan e em muitos dos poemas de Marília Garcia.
Autores influencers
Flora também passa rapidamente pelo debate sobre a profissionalização da escrita — um assunto muito em voga a partir dos anos 2000. Ela lembra que a trajetória de autores como Machado de Assis e Nelson Rodrigues já havia sido marcada pela profissionalização em outras épocas, mas lembra que hoje esse mesmo processo está dependente de um fluxo mais rápido.
— É preciso inventar caras novas, é preciso criar nichos lucrativos, transformar artistas e escritores em quase influencers para que sua contratação e edição garantam divulgação e venda mínima imediata — lamenta a pesquisadora. – Coisas assim são muito visíveis, muito patéticas. Atores despreparados, mas cheios de seguidores, têm contrato certo. Para garantir esse público, o grau automimético dessas manifestações é altíssimo, porque o olho está sempre no reconhecimento, não há lugar para a consciência crítica do que se faz. E, na verdade, não há propriamente profissionalização nesses casos, mas escravização a “curtidas” e “seguidores, e um único destino: tornar-se um trending topic.
Flora destaca, por outro lado, o uso inventivo das redes sociais e dos memes por escritores como Augusto de Campos e André Vallias:
— Detectada a lógica do mercado, é possível atuar sobre ela — diz ela. — Mas escritores e artistas, quando pré-fabricados, a diluição salta aos olhos. E os esgares de meros cacoetes sublinham a própria irrelevância.
Fora da Casa de Rui Barbosa, Flora continua se dedicando a projetos iniciados lá, como novas edições do “Cultura brasileira hoje: Diálogos”, que reúne depoimentos de artistas de diversos campos. Também julga “fundamental” a sua interlocução com alunos das universidades. Ela teme, porém, um cenário de desmonte nas ciências do país — preocupação, aliás, refletida no ensaio “Vozes enlutadas”, incluído no fim do novo livro.
— No campo das ciências humanas e da pesquisa artística, esse desmonte parece ainda mais intenso — diz ela. — Sobretudo porque não há consciência do quanto de trabalho minucioso, exigente e de longa duração ela exige. Bastaria listarmos, nesse sentido, os cursos de pós-graduação que estão sendo fechados, a quantidade de estudiosos que está se vendo forçada a deixar o país, de alunos que abandonam graduações e pós-graduações.
Leia a entrevista completa
Este livro havia sido anunciado em 2018 e acabou saindo só agora. Por que foi adiado?
Isso do tempo, da demora, é sempre curioso. Há ensaios e projetos que encontram mais rapidamente a sua configuração. Outros não. Alguns fazem questão de nos acompanhar por muito tempo, muito tempo mesmo. Eu transcrevi, logo no começo do livro, um comentário da poeta e ensaísta argentina Tamara Kamenszain sobre o retorno, quinze anos depois, a um poema que deixara de lado: “muitas vezes nossas paixões teóricas não coincidem com nossos momentos vitais, ainda que sem dúvida os antecipem”. É preciso que, de algum modo, essa coincidência atue. Às vezes simplesmente se adia, então, a escrita e a questão se mantem de modo meio surdo como ponto de fuga do que se faz. Há, nesse sentido, um ensaio muito bom de Roland Barthes sobre a presença/ausência da dimensão teatral em Baudelaire. A irrealização dos projetos teatrais se fazendo acompanhar, nesse caso, de uma teatralização que se expande por toda a obra. Não é incomum, para um crítico, não conseguir escrever sobre certas questões, certos autores, que, no entanto, permanecem cruciais para ele. E pode acontecer de esse estudo se realizar ou não. Mas, pensando de modo bem concreto, creio ter custado a montar esse livro porque imaginei, a princípio, que poderia dar conta num volume só de todos os desdobramentos a que o estudo do coro foi me levando ao longo dos anos. Incluindo certos estudos específicos do coro teatral e da função coral no âmbito da poesia narrativa, duas trilhas que evidentemente vão ser trabalhadas em outros livros – a que devo me dedicar em seguida. Eu me dei conta de que, neste livro, importava sobretudo expor certas estruturas corais meio fora de lugar sobre as quais venho me debruçando, esses coros que, para além das coralidades teatrais, e de dentro de obras singulares, de horizontes estéticos, geracionais, genéricos, e de contextos históricos específicos expõem e desafiam a sua organização. Tratava-se de demarcar um campo analítico contrastivo que mobilizasse distintas conceituações e materializações do coro, procurando observar, ao mesmo tempo, obras singulares e os contextos em que se ativam ou em que se refiguram essas coralidades. Foi assim que o livro ganhou forma. Por outro lado, é claro que a conjuntura política do país teve papel decisivo nessa demora. Eu perdi um coro de que fazia parte desde bem jovem – o centro de pesquisa da casa rui. Isso é muito forte, claro. Mas eu senti sobretudo necessidade de observar o que aconteceria no Brasil sob um governo de extrema direita, de observar os coros da ultradireita, ancorados na tecnopolítica das redes. E contrastá-los aos contracoros trabalhados em experiências artísticas que, nesse contexto, se imporiam com inteligência crítica e autonomia. Assim como ao desânimo, à paralisia, à espera que acometeriam a muitos de nós.
O livro é (e não é) uma reunião de textos em torno do coro, uma questão que você vem tratando há mais de uma década. Lendo os textos dá para perceber um fio que liga todos eles, que é uma reflexão de como as obras se relacionam com o país, que irrompe em suas páginas. Às vezes há sintonia entre elas, às vezes se impõe um objeto não identificado. Isso tem a ver com o seu interesse pela Por que esse tema lhe é tão caro?
As coralidades proliferam exatamente quando o coro parece não estar mais lá. Não parecem emergir de uma comunidade, mas exatamente de sua falta. Ou, como observou o pesquisador teatral Christophe Triau, no “trabalho de seu limite”. Há algo dessa ordem, me parece, na irrupção necessariamente constante do Brasil nesses ensaios. Como no final do bastante conhecido “Hino Nacional”, de Drummond, se poderia dizer, tendo em vista o contexto recente, e o verdeamarelismo fascistizante, que “Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil”. Essa percepção negativa meio que nos força a perguntar de novo e de novo o que é, o que é? O que é o Brasil? As vias analíticas não me parecem ser demarcações do tipo “caráter nacional” ou restaurações da tradição literária ou historiográfica. A indagação sobre o coro assume aspectos diversos e se volta aqui para diferentes manifestações - da cena tópica de fundação característica à cultura literária brasileira ao horizonte geracional visto sobretudo como campo tensional, de um momento como o da tropicália, marcado por estruturais corais interartísticas, aos lamentos lutuosos que respondem a circunstâncias históricas específicas, aos coros dissonantes que movem obras distintas no pré e no pós-2013, e assim por diante. Procuro estudar manifestações corais específicas e suas circunstâncias históricas. Inclusive sua irrupção no presente. E procuro estudar esses processos de coralização metódicos ou eventuais em trabalhos artísticos individuais. Alguns deles com forte potencial transformador no interior desses percursos (como a dramatização que invade a poesia de Carlito Azevedo) ou que se transformam ao longo dessas trajetórias (como se pode observar no trabalho de Zé Celso como encenador – vale a pena comparar os coros do Oficina nos anos 1960-70 e em encenações mais recentes, como "As Bacantes" e "Os Sertões").
Você coloca que o "esgarçamento" do pacto social do país, a difícil sustentação de uma convivência democrática, inviabilizou a abrangência coletiva do coro. Como isso influenciou a produção atual? Pode dar alguns exemplos de obras que se impõem a partir desse desacordo externo e interno?
O que me interessou, sobretudo nos textos focados na experiência histórica presente, é certa simultaneidade contraditória. De um lado, há esse esgarçamento do pacto social, que sustentou a agônica “Nova República”, e fica difícil projetar tanto uma convivência democrática sem sobressaltos autoritários, quanto qualquer forma de comunidade imaginada de amplitude nacional. O que tende a inviabilizar o coro enquanto personagem de vasta abrangência coletiva, ou enquanto estrutura textual homogênea. Por outro lado – e isso me parece significativo – houve, ao mesmo tempo, uma multiplicação de manifestações corais em meios diversos. Essas irrupções são de coralidades marcadas pelo desacordo interno, pelo tensionamento do campo cultural que as abriga, por uma recusa decisiva à generalização e ao uníssono. Os experimentos corais que funcionam como processos e lugares de transformação me interessaram particularmente. Procurei observar essas manifestações, por exemplo, em filmes como "Cinema Novo", "O Processo", "Era o Hotel Cambridge", em figurações cruentas das classes médias realizadas por Verônica Stigger, Vilma Arêas, André Sant’Anna, em construções por ventriloquização e por geminação crítica e em certas trajetórias individuais movidas por variação interna metódica – como em Augusto de Campos, Carlito Azevedo, Angelo Venosa, Lu Menezes.
Você também aponta que uma figura importante da literatura (e nas artes em geral) desta década é o "hospedeiro", o "parasita". Por que?
O último ensaio do livro parte de fato da imagem do parasita. O que tem lastro histórico – inclusive nos estudos sociais brasileiros. Basta lembrar de A América Latina, de Manuel Bomfim, onde ele pensa o processo de colonização como exemplo paradigmático de parasitismo social. Ao pensar no caráter pregnante do parasitismo para observar criticamente os anos recentes foi interessante perceber a incidência imagética de hospedeiros e parasitas em campos de reflexão distintos, Nesse sentido compilei comentários de Marcos Nobre, Márcio Pochmann, Luiz Eduardo Soares, Nuno Ramos, Silviano Santiago. A figura do parasita, da relação biológica entre comensal e hospedeiro, foi fator fundamental na visualização e na compreensão de uma hora histórica marcada por fortíssima capilaridade e potencial destrutivo. Ao lado de anatomias dessas tramas parasitárias, procurei compreender, nos anos pós-impeachment, uma série de autodramatizações do processo artístico-literário enquanto geminação. Trabalhos que circunstanciam e confrontam, no campo cultural, o modelo parasitário expansivo com o qual convivemos institucional e pessoalmente. Essas respostas artísticas de alta voltagem crítica operaram sobretudo, a meu ver, por meio de fabulações-em-dobra, de contracoralidades, de formas distintas de composição por acoplamento. Chamei a atenção, nesse sentido, para a ventriloquização em O que ela sussurra, de Noemi Jaffe, Lígia, de Nuno Ramos, Vaga Carne, de Grace Passô, para sobreposições imagético-polifônicas — como no “Moteto para Lima Barreto”, de André Vallias, no projeto Odiolândia, de Giselle Beiguelman, no tríptico Asfixia/Mercadoria/O Comum, de Bia Lessa. E para alguns trabalhos que intensificam, como parte ativa da obra, o rumor do extracampo – é o caso de "Extraquadro", de Ricardo Aleixo, de "Cassandra", "A gente se vê por aqui", "Aos vivos", "Dito e feito" e "Perdido", de Nuno Ramos, e de "Alvos" e "Pisa na Paúra", de Lenora de Barros.
Alguns autores revisitaram as canções de exílio como uma forma de reação às circunstâncias históricas. Como vê essa retomada do exílio (literal ou não) na produção atual?
Eu cheguei a pensar em retomar um texto mínimo que publiquei há muitos anos no Jornal do Brasil, que chamava Exílios, e desenvolvê-lo melhor nesse livro. Mas não fiz isso. Talvez faça isso depois. Nesse texto eu examinava o exílio em dois autores não exilados - Ana Cristina Cesar e Paulo Leminski. Nos últimos anos me chamou a atenção a retomada inesperada da canção do exílio por Angélica Freitas em poema sobre recente ataque policial a cavalo a professores grevistas em Porto Alegre. E sobre um desconforto crescente com relação ao país, sua violência e suas exclusões estruturais. Mas há exílio igualmente em certas geografias de desenho propositadamente difuso, pautadas pela indeterminação metódica, como em trabalhos de Luiza Baldan e em muitos dos poemas de Marília Garcia. Também na sobreposição de caravelas e trajes coloniais a figuras contemporâneas, na pintura de Arjan Martins e suas representações da diáspora africana. E há exílio todo o tempo nos desdobramentos do eu que marcam a poesia de Franklin Dassie – observem-se os livros Grandes mamíferos e Grande hospital. Isso para ficar em pouquíssimos exemplos.
Uma questão que acaba aparecendo nos ensaios são as discussões em torno do "profissionalização do escritor", um conceito que ganhou força nos anos 2000. Acredita que essa profissionalização foi responsável por inibir a capacidade de invenção e disrupção dos autores?
Não sei. Porque não se pode esquecer que a trajetória de Machado de Assis, de Drummond, de Nelson Rodrigues, foi marcada pela profissionalização. E isso não restringiu o potencial crítico dessas obras. Talvez o que atue agora é o fluxo rápido, rapidíssimo, do mercado. Como já acontecia no campo da indústria musical. É preciso inventar caras novas, é preciso criar nichos lucrativos, transformar artistas e escritores em quase influencers para que sua contratação e edição garantam divulgação e venda mínima imediata – coisas assim são muito visíveis, muito patéticas. Atores despreparados, mas cheios de seguidores, têm contrato certo. O mesmo se dá no campo editorial e assim por diante. Para garantir esse público, o grau automimético dessas manifestações é altíssimo – porque o olho está sempre no reconhecimento, não há lugar para a consciência crítica do que se faz. Sim – muito se faz assim. E, na verdade, não há propriamente profissionalização nesses casos, mas escravização a “curtidas” e “seguidores, e um único destino – tornar-se um trending topic. Não há lugar, nesses casos, para a invenção. Por outro lado, um escritor-inventor como Augusto de Campos – é impressionante como ele soube aproveitar a lógica dos memes na produção recente dele, divulgada via Instagram. Ou como o poeta André Vallias usa com inteligência o potencial também disruptor da tecnologia e da difusão via redes sociais. Detectada a lógica do mercado, é possível atuar sobre ela. Mas escritores e artistas, quando pré-fabricados, a diluição salta aos olhos. E os esgares de meros cacoetes sublinham a própria irrelevância.
Para um crítico, é mais difícil de lidar com obras contemporâneas do que as do passado?
De certo modo sim, poque estamos imersos na nossa hora histórica. Então há a tendência a naturalizar o vivido. A observar com a perspectiva do hábito. A compreensão crítica do presente exige deslocamento, desautomatização. Exige idealmente sobretudo a autonomia, a independência e o descarte do reconhecimento fácil. Aprendemos sobretudo com o que nos tira do lugar, com aquilo para o que nos parecem faltar categorias. As obras que nos fazem pensar e redefinir o nosso próprio lugar crítico são fundamentais nesse sentido. Inclusive obras do passado que subitamente nos interrogam, exigindo também a própria descompartimentação. Os estudiosos de fato relevantes, a meu ver, são aqueles capazes de esforço especulativo historiográfico e de intervenção crítica no presente. Porque não há como repensar o passado sem a consciência crítica do presente. E não há estudo histórico que não se limite a trabalho de antiquário se os seus recortes não dialogam com agudo esforço de compreensão do contemporâneo.
Há um desmonte da ciência no país? Como enfrentá-lo?
Há sim. E no campo das ciências humanas e da pesquisa artística esse desmonte parece ainda mais intenso. Sobretudo porque não há infelizmente a consciência do quanto de trabalho minucioso, exigente e de longa duração esse trabalho exige. É observar o negacionismo histórico que se tentou veicular no Brasil, negando a experiência histórica da ditadura civil-militar de 1964, ou o que significa o escravismo para a compreensão da sociedade brasileira e do presente para relembrarmos a importância desses estudos, para ficarmos em duas linhas de estudo. É pensar no quanto de trabalho exige a formação de um músico, de um ator, de um artista plástico, um historiador da arte, um pesquisador de literatura. É fundamental, igualmente, a presença de pesquisadores de verdade na concepção, na organização e na definição de linhas de estudo, exposição, na criação de grupos de trabalho em acervos de grande porte como os da Biblioteca Nacional ou do Museu de Belas Artes, ou mais focados como os da Casa Rui e de alguns centros universitários. É fundamental que estudantes disponham de bolsas para a permanência nas universidades e para o desenvolvimento de trabalhos cujos resultados atingem todos nós. Pensando em apenas um dos pesquisadores que foram exonerados da Casa Rui na mesma época que eu, no Charles Gomes, do campo dos estudos jurídicos, é extraordinário como depois da dissolução de todos os projetos dele na instituição, da dispensa de bolsistas e do encerramento do vínculo com a cátedra Sérgio Vieira de Melo, ele foi capaz de encontrar meios de fazer o Laboratórios Jurídico de atendimento a refugiados funcionar de modo independente em outro local, aqui no Rio, e de a cátedra dar origem a outros laboratórios semelhantes, agora no México, onde ele esteve em pós-doutoramento. Se esse foi um enfrentamento de condições adversas de trabalho com resultado excelente, não é, no entanto, o habitual. Bastaria listarmos, nesse sentido, os cursos de pós-graduação que estão sendo fechados, a quantidade de estudiosos que está se vendo forçada a deixar o país, de alunos que abandonam graduações e pós-graduações. Creio que, entre as vozes enlutadas de que procuro tratar na última seção do livro, sem dúvida há também o registro desses desmontes.
Na última entrevista para o GLOBO, você falou da alegria que a sua atividade na Casa Rui lhe dava. Como tem sido a vida depois de sair de lá? Ao que tem se dedicado?
Antes de entrar para o Centro de Pesquisa da Casa Rui, eu já trabalhava como professora na PUC do Rio, onde fiz toda a minha formação. Fiquei lá, sem contar com as monitorias, por seis anos. Também passei pela UFF como professora. E logo depois de entrar para a Casa Rui fui para a UNIRIO, para o Departamento de Teoria do Teatro, no Centro de Letras e Artes, e nunca saí de lá. Encontrei um ambiente de trabalho muitos bom na UNIRIO, o que me permitiu participar da criação dos cursos de Letras e de Estética e Teoria do Teatro e me permitiu, principalmente, conviver com alguns alunos excelentes todos esses anos. Essa interlocução tem sido fundamental para mim. Quanto aos projetos são muitos. Há alguns trabalhos coletivos da Casa Rui que ainda pretendo concluir – fechar mais um ou (pela extensão) talvez dois volumes da série de depoimentos Cultura Brasileira Hoje: Diálogos, a edição de dois volumes de seminários sobre Escrita e Visualidade e sobre Sousândrade. Além, é claro, da edição crítica do Guesa Errante de que participo como parte da equipe responsável. Sobre isso penso sempre numa carta que o Caio Fernando Abreu me mandou há muitos anos, e onde, a certa altura, ele fez um comentário muito bonito – “o tempo que temos, se estamos atentos, será sempre exato”. Talvez isso se dê não só com relação à vida de cada um de nós – como o Caio sublinhava - mas também com relação ao tempo de maturação ou, ao contrário, à intempestividade com que certas reflexões exigem vir a público. Entre o que exige maturação mais lenta – como o estudo sobre o coro (que ainda terá os dois desdobramentos de que falei) - e o que exige intervenção mais imediata – como aconteceu comigo nos períodos em que colaborei regularmente com o Jornal do Brasil e em textos como “Crítica como papel de bala”, “Coros dissonantes”, em 2013, ou “Ações artísticas, ações políticas”, em 2016, ou seminários como “Crítica de Intervenção” ou “Cultura e Capital”. Mas curiosamente a urgência e a necessidade de realização são igualmente fortes nos dois casos. São urgências distintas, mas só podemos realizar dignamente o que se impõe como necessidade de estudo e fator de compreensão de nossa experiência histórica.
O Globo