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sábado, fevereiro 26, 2022

Linhas vermelhas na Ucrânia e em Portugal




A Ucrânia não tencionava tornar-se uma base para invadir a Rússia. Se tentou aderir à Nato foi porque sabia que só a obrigação de defesa mútua da Aliança Atlântica poderia dissuadir Putin da invasão. 

Por Rui Ramos (foto) 

Porque é que Putin atacou, apesar da ameaça das sanções ocidentais? Pensem nisto: quando é que a Alemanha suspendeu a “certificação” do gasoduto Nord Stream 2? Há dois dias. E quando é que Putin anexou a Crimeia? Há oito anos. Putin iniciou a ocupação da Ucrânia em 2014. Que lhe aconteceu? Os clientes ocidentais do seu gás trataram até de aumentar a dependência energética em relação à Rússia. Com este precedente, acham que Putin tinha motivos para levar a sério a retórica ocidental? As sanções eram para antes das bombas começarem a cair, não para depois, como explicou o presidente da Ucrânia. Ninguém o ouviu.

Percebe-se assim porque é que a Ucrânia, desde 2014, insistiu na adesão à Nato. Não, a Ucrânia tal como a Hungria, a Polónia ou os países bálticos, não tencionava tornar-se uma base para a invasão da Rússia. A Ucrânia tentou aderir à Nato porque sabia que só a obrigação de defesa mútua da Aliança Atlântica poderia dissuadir Putin de invadir. Em 1994, a Ucrânia renunciou às suas armas nucleares. A Nato era a garantia que lhe restava. E por isso mesmo, talvez esta guerra se tenha tornado inevitável no sábado passado, quando o presidente ucraniano perguntou mais uma vez aos líderes da Nato se era viável a entrada na organização, e estes nada lhe responderam. Putin deve ter pressentido que o presidente americano que entregou Kabul ia também entregar Kiev.

Antes de 1989, a Aliança Atlântica, ou mais exactamente, o compromisso dos EUA de defender os seus aliados na Europa, foi a razão pela qual existiram democracias liberais no continente. Sim, nem todos os membros da Nato eram democracias liberais (como Portugal até 1974, ou a Turquia agora), e nem todas as democracias europeias eram membros da Nato (como a Suécia): mas sem a pressão da Nato, nem as democracias teriam prevalecido, nem outros países (como Portugal em 1975) se teriam democratizado. A vontade dos povos de viverem livremente também conta? Sem dúvida. Mas os húngaros em 1956 e os checoslovacos em 1968 mostraram essa vontade, e foram esmagados pela Rússia então comunista. Agora, com uma nova autocracia, a Rússia voltou. A Nato parece o único limite à reconstituição do seu império. Por isso, a Ucrânia a procurou. A porta devia-lhe ter sido aberta. Não foi porque a Ucrânia quis entrar na Nato que há guerra; há guerra, porque a Ucrânia não entrou.

A Aliança Atlântica faltou à Ucrânia. Ainda assim, é a principal garantia da democracia liberal na Europa. Por isso, separa os que, embora com ideologias diferentes, estão com a democracia liberal, e aqueles que pretendem outro tipo de regime. Em 2015, o presidente Cavaco Silva exigiu um compromisso escrito sobre a Aliança Atlântica e a UE para dar posse a António Costa. Alguma gente estranhou. Não devia ter estranhado. Perante a Ucrânia, PCP e BE não conseguiram esconder o que são: ou apoiam Putin (PCP), ou, numa variante hipócrita, culpam a Nato (BE). Foi a estes partidos que António Costa ofereceu durante seis anos influência no governo em Portugal. Fez aliás mais: ao mesmo tempo que abatia o muro que à esquerda o separara dos inimigos da democracia liberal, conseguiu pôr os partidos à sua direita a levantar muros entre si. Ora, todos esses partidos – o PSD, o CDS, a IL, o Chega — estão do lado certo na questão fundamental. Talvez seja óbvia agora a suja distracção que, à conta do fantasma da “radicalização da direita”, foram as “linhas vermelhas”, as “cercas sanitárias” e ainda os “manifestos clarificadores” dos inevitáveis idiotas úteis. A fronteira da liberdade está onde sempre esteve. É pena ter sido preciso o assassinato de um país e de uma democracia para alguns perceberem.

Observador (PT)

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