Entrevista do filósofo basco Fernando Savater a Laura Ventura, do jornal argentino La Nación
Acompanhamos tempos de extrema polarização, de eleições acaloradas, de reações violentas. Como reconstruir um tecido social é uma das grandes questões que permeiam a vida em sociedade.
Para Fernando Savater, falta-nos a união pelo entendimento de que somos seres semelhantes, apesar de nossas diferenças: “Em sociedade nos defendemos melhor, é nosso melhor instrumento para lutar contra nossa vulnerabilidade. Somos tão sociais que as doenças são sociáveis, como as epidemias, e é por isso que precisamos nos separar”.
Em entrevista concedida ao La Nacion, Savater, um filósofo da ética, fala sobre temas como democracia, polarização, a atual política do cancelamento, o que se pode tirar de positivo da pandemia, e fala de forma inspiradora sobre o amor e sua falecida esposa.
Fernando Savater é ativista nas áreas da ética, religião e da luta contra o terrorismo, e é um importante teórico na área da educação. É professor de filosofia na Universidade Complutense de Madri, diretor da revista cultural Claves de Razòn Prática, e é autor de mais de 50 obras.
A entrevista na íntegra você confere a seguir:
O senhor define populismo como “a democracia dos ignorantes”. Está se referindo aos líderes ou aos eleitores?
Fernando Savater: Aos cidadãos. A maioria das pessoas não sabe fazer uma cirurgia de coração de peito aberto, e não há nada de errado nisso. O problema é se você vai ao hospital porque tem que ser operado e acaba com uma dessas muitas pessoas que não sabem fazer uma cirurgia. O problema não é o político em si, que geralmente é demagogo e ignorante, o problema é com as pessoas que o elegem. Existem outras formas de populismo, aqueles que se impõem pela força. Existem ditadores que se impõem por meios populistas, por exemplo, mas o problema é quando os cidadãos elegem o populista.
Como podemos educar as pessoas para que não votem no populismo?
Fernando Savater: Os cidadãos podem ser educados com um senso de liberdade e de suas possibilidades, direitos e deveres. Alguns de nós passaram 35 anos tentando educar as pessoas.
A ética também intervém na votação. Por exemplo, devo votar em uma pessoa, mesmo que ela seja corrupta, se ela me beneficiar com alguma política?
Fernando Savater: Sim, claro. Cada um tem a sua liberdade e, por isso, devemos educar as pessoas em relação à ética.
Existe uma figura, a do militante. É prejudicial? É um ataque à liberdade em uma sociedade?
Fernando Savater: Não, ser militante é bom se houver uma boa causa. Gosto de pessoas que se comprometem, e não de quem vê as ideias passarem, como as vacas veem o trem passar e não se movem. Gosto de pessoas que viajam de trem.
Em uma sociedade tão polarizada, o que é possível fazer para propor diálogo, para aproximar as posições de modo que não haja um abismo?
Fernando Savater: Em uma democracia, a unanimidade é suspeita. A polêmica não é ruim, desde que esteja sujeita às diretrizes da democracia, que não precisa criar harmonia, mas civilizar desarmonias e discordâncias. Uma coisa é um discordar do outro e outra é um atirar no outro. O ruim neste caso não é a discordância, mas o tiro. As democracias são chamadas de parlamentares porque se baseiam na palavra. Montesquieu diz: “Se você aproxima o ouvido a um país e não ouve nada, pode ter certeza de que é uma ditadura. Se você se aproxima e ouve gritos, insultos e polêmicas, é uma democracia”.
Como é possível reconstruir um tecido social?
Fernando Savater: Com educação e liberdade, mas o importante é que entendamos que somos, apesar de todas as nossas diferenças, seres semelhantes. Em quê? Somos seres vulneráveis, somos frágeis, um mecanismo com grandes possibilidades, mas que se quebra facilmente. Em sociedade nos defendemos melhor, é nosso melhor instrumento para lutar contra nossa vulnerabilidade. Somos tão sociais que as doenças são sociáveis, como as epidemias, e é por isso que precisamos nos separar.
Mas também há multidões, um conceito que você estuda.
Fernando Savater: A multidão se dá quando cada um se dedica a si mesmo, quando se atropela, chuta, e também se deixa amedrontar, pois são as pessoas inseguras que a inventam. Solidariedade é o que transforma uma multidão em sociedade.
Existem alguns líderes que usam as redes sociais para vociferar, para acusar de forma nada diplomática.
Fernando Savater: Sim, alguns são muito conhecidos...
Como o senhor interpreta essa ação?
Fernando Savater: Quando os líderes são ruins, o que se precisa fazer é mudá-los. Votar em outros. E se o líder ainda for ruim, a culpa é sua, porque você não o mudou.
Eric Vuillard disse no Hay Festival, parafraseando Voltaire, que, quando essas expressões populares surgem, geralmente há um líder nas sombras com ressentimento e frustração. O senhor está de acordo?
Fernando Savater: Há momentos em que os movimentos populares expressam um descontentamento objetivo. As pessoas reclamam porque a economia está ruim, a saúde está ruim, porque os direitos coletivos ou individuais estão sendo esmagados. Não é preciso se aprofundar muito. Mas às vezes é lançado um falso pretexto, que parece vital, mas quer mudar a democracia. Isso ocorre frequentemente na história.
O senhor sempre expressou de forma muito corajosa a sua voz e seu repúdio às ações do ETA.
Fernando Savater: Agora menos, estou mais aposentado.
O senhor viu o polêmico pôster que divulgava a série Patria, baseada no romance homônimo de Fernando Aramburu [equiparando um terrorista a uma vítima]? O que sentiu?
Fernando Savater: Um pouco de raiva, porque traía o romance. O romance não é isso. É excelente. Isso foi uma operação comercial, provavelmente feita com essa intenção de agora de que “somos todos maus, então nenhum de nós é mau”. O romance não é assim, muito pelo contrário. Isso me irritou. Felizmente, a série responde ao romance, e não ao pôster.
O senhor fala com frequência, há décadas, de Celia Amorós. Ela é uma referência indiscutível do feminismo. O senhor já foi atacado pelo feminismo?
Fernando Savater: A Celia é uma parceira minha há muito tempo. Fui atacado por todos os motivos que você possa imaginar. Diga um e tenho certeza de que fui atacado por isso. Com Celia, compartilhava um grande interesse por Sartre em um certo momento. Hoje em dia não nos vemos, mas sempre tive um grande respeito intelectual por ela e procuro respeitar intelectualmente aqueles que se expressam intelectualmente. Mas estender esse respeito a essas pesquisas que o Ministério da Igualdade faz, às vezes, não consigo.
O senhor mencionou os sartreanos, e penso em Mario Vargas Llosa, que também foi um deles em certo momento. Junto a ele, aderiu ao manifesto de um grupo de intelectuais dos Estados Unidos, publicado na revista Harper’s, onde condena a intolerância de algumas esferas, bem como a agora chamada “política do cancelamento”. O senhor já a praticou alguma vez?
Fernando Savater: Pessoalmente, sim. O que eu não gosto, cancelo, mas não é por isso que vou derrubar estátuas. Tenho muitas pessoas canceladas no mundo, mas é em um nível pessoal. A verdade é que é inevitável. Ter certa capacidade de eliminar coisas que não se quer é limpar um pouco o sótão da mente.
Gosto dessa metáfora sobre o “sótão da mente”. A memória é limitada.
Fernando Savater: É que às vezes você tem que esvaziar a mente para que todo o resto faça sentido.
Que autores o senhor nunca quer remover desse sótão?
Fernando Savater: Ídolos literários, Borges ou Samuel Beckett. Além disso, como gosto muito de corridas de cavalos, sou muito “burrero”, Jorge Valdivieso. E alguns ídolos do cinema.
Quem são os seus heróis do cinema?
Fernando Savater: Charles Laughton, John Wayne, Gene Kelly.
Em 2012, a televisão argentina apresentou um programa que ligava a literatura ao urbano [Las ciudades y los escritores, da TN]. Estamos atualmente em um cenário onde a autoficção, ou a ficção do eu, tem um papel relevante. O que esse fenômeno diz, não tanto em termos literários, mas sobre o contexto em que nos encontramos?
Fernando Savater: Agora, há muito mais pessoas que escrevem do que pessoas que lêem. O difícil é encontrar leitores. Embora isso sempre tenha sido assim, não é algo exclusivo do presente. Bons leitores são mais preciosos do que escritores. Gosto muito desses livros, da literatura do eu. Dependendo de qual “eu”, é claro.
La peor parte, seu último livro, é dedicado à sua esposa. Nele o senhor diz que muitas vezes escrevia para que ela o amasse mais.
Fernando Savater: Sim, costumam me perguntar o que é o amor. E eu acho que é parar de viver para algo e viver para alguém. Fazia as coisas que sei fazer, que não são muitas, não esperando que me dessem o Nobel, mas que ela sorrisse para mim. Isso era suficiente. As coisas que vêm do amor não têm preço, enquanto todo o resto está à venda.
Então, o que é amor?
Fernando Savater: É uma virada na sua vida. Sua vida funciona no curso de uma rotina, de uma imitação, e o amor faz você ver o mundo em cores diferentes, para o bem e para o mal. O amor dá uma nova intensidade ao mundo e, por outro lado, deixa você um pouco desamparado diante de muitas coisas, principalmente diante do medo de perder o amado. De perder o objeto de amor, porque se a pessoa que você ama morre, o amor continua.
O amor platônico realmente existe?
Fernando Savater: Não, não. Isso é uma bobagem que os provençais inventaram. É como as pessoas que agora dizem que são contra o amor romântico. Mas não há nada além de amor romântico!
Fala-se de relacionamentos e do amor tóxico...
Fernando Savater: Não. Há pessoas para as quais tudo se torna tóxico porque não nasceram para viver, apenas para sofrer. Então, literatura, amor, religião, política se tornam tóxicos para elas.
Qual é a sua opinião sobre o conceito de relacionamento líquido e de amor líquido [tese proposta pelo sociólogo Zygmunt Bauman]? Você acha que realmente isso existe?
Fernando Savater: Para mim, isso de amor líquido... Não é algo importante. São coisas que nós, professores, inventamos.
O senhor tem medo da morte?
Fernando Savater: Acho que não tenho pensando muito nela. Spinoza, em sua Ética, diz: “O homem livre nada pensa menos do que em sua morte, e todas as suas reflexões são sobre a vida”. Tentei aplicar essa regra. Minha própria morte não me preocupa, a dos outros sim. Para mim, a morte sempre foi algo que acontece aos outros. Aquilo que diz o túmulo de Marcel Duchamp, em Rouen: “Por outro lado, são sempre outros os que morrem”.
O que podemos tirar de positivo deste momento tão complexo, social e pessoalmente, marcado pela pandemia?
Fernando Savater: De todos os males pode-se tirar algo proveitoso. Temos livros que esquecemos de ler, temos tempo para fazê-lo e para assistir a filmes e séries. E temos também a conversa, porque às vezes convivemos com pessoas a quem mal cumprimentamos. Não devemos perder tempo lamentando o que não podemos fazer. Também devemos desenvolver uma virtude que perdemos: a gratidão.
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