Raymond Aron foi, durante boa parte do século XX, o modelo por excelência do intelectual avesso ao fanatismo, ainda que também à indiferença e à banalização da política. E é talvez por isso que tenhamos a aprender muito com ele.
Por Fernando Schüler* (foto)
Talvez seja só uma impressão, mas vem crescendo o número de pessoas que simplesmente cansaram do radicalismo vazio e da histeria que foi tomando conta, em nossa época, do universo da política. Seu ambiente natural são as redes sociais e seu imenso besteirol, mas o problema é muito mais amplo. Observe-se o debate eleitoral, que mal começou. Lula chama Bolsonaro de “miliciano” e Sergio Moro de “juiz canalha”. Bolsonaro chama Lula de “bandido” e “cachaceiro”. Sugere que alguém pode estar querendo “manipular as eleições”, na Justiça Eleitoral, enquanto o ministro Barroso, em seu discurso de despedida do TSE, acusa o presidente de uma incrível sequência de golpes contra a democracia, que vão desde aquele desfile com o tanque da fumacinha, na Esplanada, até uma suposta ordem para que jatos da Força Aérea quebrassem vidraças do STF.
O curioso disso tudo é perceber que se trata, em boa medida, de um radicalismo inteiramente vazio. Teremos nossa nona eleição presidencial, neste ano, desde a redemocratização, sob regras decididas no Congresso. Os partidos têm um caminhão com 5 bilhões de reais, sacados do bolso dos contribuintes, para gastar nas campanhas, vamos debater política até a exaustão, e no final a faixa presidencial estará lá, esperando pelo vencedor. Tem sido assim, nos últimos trinta ou quarenta anos. A política feita nos limites da democracia liberal, com seus erros e acertos.
Se isso é verdade, então por que a retórica grandiloquente sobre temas prosaicos, como se vivêssemos, a cada novo mexerico em Brasília, a um passo do abismo? Dias atrás li que estas eleições põem em jogo o “futuro de nossa democracia”; que decidiremos se “queremos ser uma Cuba ou Venezuela”. Um colega me enviou uma mensagem dizendo que “temia pelo pior” e que via muitas semelhanças entre o Brasil de hoje e a “Alemanha dos anos 30”. O.k., é possível que ninguém acredite de verdade nessas coisas. Mas tenho a impressão de que até no exagero estamos nos acostumando a exagerar.
Pensar sobre essas coisas me fez lembrar de um intelectual que viveu o auge da Guerra Fria, em um mundo onde o radicalismo era muito mais intenso e de certo modo “verdadeiro” do que hoje, pois implicava o conflito real entre modelos de sociedade. Seu nome: Raymond Aron. Aron foi, durante boa parte do século XX, o modelo por excelência do intelectual avesso ao fanatismo, ainda que também à indiferença e à banalização da política. E é talvez por isso que tenhamos a aprender muito com ele.
Em 1955, ele publicou O Ópio dos Intelectuais. O livro traduz, antes de qualquer coisa, seu espanto com a adesão de boa parte da intelligentsia francesa ao comunismo soviético. Sartre havia recém-voltado da União Soviética e declarado ter visto por lá “a mais ampla liberdade de crítica”. Aron foi na contracorrente. O ópio dos intelectuais não era apenas o marxismo, mas sua propensão ao dogmatismo. Essa posição “morna e confortável” de quem se fecha à contradição e “não enxerga simplesmente porque não quer enxergar”. A posição desses intelectuais “tão ciosos da ideia de liberdade, aqui na França”, mas indiferentes a essas mesmas liberdades “quando cruzam a cortina de ferro”.
Aron apreciava o debate político inglês, seu pragmatismo e apego às questões reais de políticas públicas. Era cáustico com a intelligentsia francesa e sua “vocação para o absoluto”. Sua mania de “associar a si mesma com as emoções e sonhos da humanidade”. É a mesma constatação feita por Hannah Arendt comparando a grandiloquência dos jacobinos franceses ao debate pragmático e constitucional dos pais fundadores da democracia americana. Daí sua desconfiança com a “poética ideológica”. Não tinha nada a oferecer que se comparasse à “utopia total” de seus adversários comunistas. Sua crença sempre foi na democracia liberal, com suas imperfeições e delicado equilíbrio institucional. Sociedades abertas envolvem múltiplos objetivos e valores sociais. É preciso aceitar sua legitimidade. Combinar modelos de mercado com a proteção social, por exemplo. Aceitar que há gente de “direita”, favorável à liberação do uso de armas, e gente de “esquerda”, na direção contrária. Talvez seja por isso que me lembro de Aron, nos dias que correm, quando vejo um tribunal censurando pessoas em nome da “verdade”, e o teatro da política por vezes reduzido a um dualismo banal entre “civilização e barbárie”.
Aron não se identificava à esquerda ou à direita. Gostava de se dizer um “incorrigível liberal”. Peitou a direita francesa, ao defender a independência da Argélia, e os dogmatismos de esquerda quase a vida inteira. Na prática, antecipou um tema que se tornaria onipresente com a queda do Muro de Berlim: o fim das ideologias. As sociedades do pós-guerra, dizia, são “imperfeitas e injustas”, mas o aumento na qualidade de vida que elas vêm alcançando é suficiente para que “reformas soem mais promissoras do que a violência”. Além disso, não fazia mais sentido pensar em sociedades puramente liberais ou sob controle do Estado. Estamos condenados às “utopias de médio alcance”, que se fazem no dia a dia das grandes democracias.
A mensagem de Aron prossegue tremendamente atual. O comunismo se foi, ainda que alguns de seus fantasmas continuem por aí. O que surpreenderia Aron, imagino, se pudesse vislumbrar por um momento este tempo confuso, seria a sobrevivência do radicalismo e da estridência política mesmo nesta era de ideologias mortas. Vivemos uma época em que o fanatismo pode ter perdido a intensidade da Guerra Fria, mas se espalhou pela cultura. Desconfio que veria nisso o pior dos mundos: o radicalismo movido a coisa nenhuma. A raiva desvinculada da paixão pelas grandes utopias, mas temperada pela mesquinharia do dia. A política reduzida a um tipo de entretenimento de massas, cujo epicentro é o mundo digital, mas cuja lógica vai muito mais além.
Vargas Llosa diz que Aron só perdeu a linha uma vez, quando se exasperou no maio de 68, que apelidou de “psicodrama revolucionário”. A recusa juvenil de hierarquias e autoridade, sob a estética de uma revolução inexistente e impossível, que nada tinha de objetivo a propor. No auge da confusão parisiense, Sartre publicou um artigo na revista Le Nouvel Observateur dizendo que os estudantes deveriam carregar Aron nu, pelos corredores da Sorbonne. Jean Daniel, editor da revista, chegou a hesitar sobre sua publicação, mas terminou ao lado de Sartre. “Melhor estar errado com Sartre do que certo com Aron”, teria dito, na famosa frase. Era perigoso ficar ao lado daquele intelectual algo cético, “ideólogo do common sense”, como muitas vezes foi chamado, e que se recusou, a vida inteira, a distinguir entre bons e maus campos de concentração.
À época em que Jean Daniel disse aquela frase era Sartre quem dominava o centro do palco, mas a história é longa e cobra o seu preço. Observando meio século depois, quando o Muro de Berlim, e toda a loucura que ele representou, não passa de uma lembrança triste, é difícil não pensar que teria sido melhor estar com Aron, e não Sartre, durante todo aquele tempo.
*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Revista Veja
Postado há 8 hours ago por Brasil Soberano e Livre