Por Carlos Alberto Sardenberg (foto)
Nikolai Patrushev é o chefe do Conselho de Segurança Nacional da Rússia e o principal ideólogo da “turma” de Vladimir Putin, um grupo de ex-membros da KGB que comanda o governo. Sua visão básica: o Ocidente pretende esmagar a Rússia, impondo-lhe “agressivamente os valores neoliberais que contradizem nossa visão de mundo” (citado em The Economist, edição de 19 a 25 de fevereiro).
Qual visão de mundo? Não é a volta do comunismo, até por razões pessoais. É dinheiro. Esses ex-agentes da KGB, como o próprio Putin, acumularam fortunas quando caiu o regime soviético e foram introduzidas reformas capitalistas. Acumularam não pela capacidade como investidores. Foi roubo.
Primeiro, nas privatizações das grandes estatais. Aqueles funcionários tiveram acesso privilegiado a informações e a “moedas de privatização”, como títulos da dívida pública, vendidos a preço de banana e aceitos a preço de ouro na compra das estatais.
Depois, seguiram ganhando concessões “informais” de negócios nas áreas de energia, infraestrutura e bancos, principalmente.
Em resumo, um caso de capitalismo de amigos, levado ao limite.
Ao mesmo tempo, porém, foram introduzidas reformas capitalistas, como amplo direito à propriedade privada de bens e serviços, proteção do lucro e abertura de negócios para o exterior. Há uma política econômica baseada em metas de inflação, controle das contas públicas e taxa de câmbio mais ou menos flutuante. Com empresas privadas e seus acionistas, a Bolsa de Valores de Moscou passou a ser um alvo de investidores ocidentais.
Nesse quadro, surgiram magnatas não oriundos do regime soviético, mas investidores e negociantes que souberam aproveitar oportunidades na Rússia e, depois, em toda a Europa Ocidental. A formação de uma classe média cosmopolita foi a consequência direta — classe que se sente europeia.
Por que, então, o ideólogo de Putin tem tamanha bronca dos “valores neoliberais”? Ele se refere a direitos e liberdades individuais. Na visão de mundo de Putin e sua turma, a democracia à ocidental é ineficiente, incapaz de gerir a economia e a sociedade.
Dito de maneira direta: oposição só cria caso e atrapalha o governo; imprensa livre só serve para inventar fake news; as minorias são um estorvo; liberdade partidária divide o povo.
Essa é também a visão de mundo da China. Quando as democracias ocidentais enfrentavam dificuldades para lidar com crises financeiras e com a pandemia, o presidente Xi Jinping decretou o fim desse “modelo” e o sucesso do modo chinês de administrar um capitalismo de Estado.
De certo modo, Putin cometeu um erro ao acreditar demasiado nessa versão. Para ele, as democracias ocidentais — com suas liberdades dentro e fora dos países — jamais conseguiriam se unir para enfrentar seu expansionismo.
Foi o contrário, pelo que se vê até agora. Entre as principais democracias, é praticamente unânime a condenação da Rússia e o acordo para impor pesadas sanções econômicas a governo, empresas e indivíduos.
Sim, o Ocidente também pagará um preço pelo bloqueio aos negócios russos, mergulhados principalmente na economia europeia. Mas a ideia é provocar uma reação das elites empresariais russas e da classe média.
Até agora, as elites, em privado, manifestavam desagrado com o regime. Mas, como estavam ganhando dinheiro e em expansão, bom, deixa pra lá. Declaravam-se neutras e não se metiam em política.
Mas, se a economia russa for levada a uma forte recessão e perda de riqueza, muita gente por lá vai cogitar: tudo isso para anexar a Ucrânia? Tudo isso para alimentar as ambições sanguinárias de Putin?
Não existe a possibilidade de uma invasão à Rússia para derrubar o governo Putin. Seria iniciar uma guerra mundial nuclear. Mas é real a possibilidade de os próprios russos perceberem os danos causados pela turma de Putin.
Também é real a possibilidade de Putin endurecer ainda mais o regime ao se sentir pressionado internamente. Esse é um problema que os russos terão de resolver.
O Globo