por Mayara Paixão | Folhapress
Se a sombra da Guerra Fria é um dos principais elementos para entender o pano de fundo da invasão da Ucrânia, há também outros eventos dos últimos 30 anos que dialogam com a guerra iniciada pela Rússia no país do Leste Europeu. As guerras da Bósnia (1992), de Kosovo (1999), da Geórgia (2008) e da Síria entram nessa equação. E até a guerra no Iraque ajuda a entender o contexto.
Os conflitos, que ocorreram na Europa após a dissolução da União Soviética e deixaram saldo de mortos que pode chegar a 1 milhão, têm características que dialogam com o que acontece na Ucrânia --seja as disputas étnicas de alguns, a participação da Otan (aliança militar ocidental) em outros, a capacidade de organização militar russa ou a disposição dos EUA de interferirem (ou não) num conflito.
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GUERRA DA BÓSNIA (1992 A 1995)
O conflito civil na Bósnia, que deixou mais de 100 mil mortos, está inserido no longo processo de desintegração da Iugoslávia, uma ex-república soviética que aglutinou uma infinidade de nações (ou etnias). O fim da União Soviética foi alavanca decisiva para que os movimentos separatistas regionais ganhassem força.
Depois de Eslovênia, Croácia e Macedônia alcançarem suas independências, foi a vez da Bósnia e Herzegovina, região complexa devido à multiplicidade de etnias. O conflito foi marcado pela tentativa de limpeza étnica da população muçulmana local, no maior crime de genocídio cometido em território europeu no pós-guerra.
Qual elemento dialoga com a Ucrânia? Tanto a Bósnia quanto a Ucrânia, países descendentes de povos eslavos, são Estados multinacionais, explica Angelo Segrillo, professor de história contemporânea da USP especializado em Rússia. "Isso cria uma riqueza sociocultural, mas também potenciais conflitos étnicos".
O último censo populacional ucraniano diz que mais de 130 nacionalidades e grupos étnicos convivem no país, sendo a maioria ucraniana (77%) e russa (17%). O fator pode não ser o principal motor da invasão russa, mas tem enorme peso: Vladimir Putin diz que a população dos países constitui "um só povo", e duas regiões de maioria russa do leste da Ucrânia, no Donbass, autoproclamaram-se independentes e foram reconhecidas por Moscou.
GUERRA DE KOSOVO (1998 A 1999)
Também parte do imbróglio da ex-república socialista da Iugoslávia, a província de Kosovo, de maioria albanesa e minoria sérvia, tentou proclamar sua independência. A reação iugoslava, sob o comando de Slobodan Milosevic, foi brutal. Mais de 10 mil morreram, e centenas de milhares ficaram desabrigados ou emigraram.
Qual elemento dialoga com a Ucrânia? A Otan (aliança militar ocidental criada 50 anos antes), que está no centro do conflito atual, interveio na guerra do Kosovo. A aliança, transgredindo normas do direito internacional e sem mandato específico do Conselho de Segurança das Nações Unidas, enviou tropas para a região. O Kosovo só viria a se tornar independente, de fato, em 2008, mas a participação ocidental no conflito teve peso histórico.
A intervenção foi um dos maiores exemplos da predisposição da Otan, que ao mesmo tempo engolfava Polônia, Hungria e República Tcheca, para mexer no xadrez do Leste Europeu. Isso contribuiu para a frustração dos russos, que, de 1991 a 1998, ensaiaram uma proximidade com o Ocidente, explica Pedro Feliú, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP.
"Houve uma tentativa de aproximação russa do Ocidente, mas os EUA viraram as costas, mesmo que entre lideranças americanas tenha havido divergências sobre a necessidade e o quão estratégico seria a expansão da Otan", diz. "Esse fator abriu espaço para o avanço do ultranacionalismo russo." Vladimir Putin, que chegou à Presidência em 1999, é fruto desse sentimento.
GUERRA DA GEÓRGIA (2008)
A Geórgia, uma pequena ex-república soviética na região do Cáucaso, foi invadida pela Rússia por duas razões principais: primeiro, porque estava há muito no satélite da Otan, e o governo russo quis impedir que o país se soma-se à aliança militar; segundo, porque o governo do georgiano Mikheil Saakashvili, aliado do Ocidente, tentou incorporar duas áreas de maioria étnica russa: Abkházia e Ossétia do Sul.
O governo russo respondeu. Morreram cerca de 1.100 pessoas, sendo 400 civis, e aproximadamente 200 mil perderam seus lares no conflito.
Qual elemento dialoga com a Ucrânia? Primeiro, a guerra foi um contundente exemplo da disposição russa em contrabalançar o poderio americano na região, destaca Feliú. Além disso, se havia uma Rússia enfraquecida nos conflitos da Bósnia e de Kosovo, aqui há um país que viu despontar sua capacidade de organização militar e investiu na renovação das Forças Armadas.
GUERRA NA SÍRIA (2011 ATÉ HOJE)
A guerra civil síria pode não ter relação territorial com a Rússia, mas isso não significa que não tenha a participação de Moscou --os russos são, aliás, um dos principais atores do conflito.
A crise, que começou com levantes populares que pediam o fim da ditadura de Bashar al-Assad, perdura até hoje, e o terrorismo, com a participação de grupos como o Estado Islâmico (EI), se somou ao conflito.
O governo de Putin dá suporte à ditadura de Assad --o sírio, aliás, foi um dos poucos que manifestaram apoio à invasão da Ucrânia. O Centro de Documentação de Violações sírio diz que pelo menos 7.300 mortes de civis e combatentes na guerra podem ser atribuídas a forças russas.
Qual elemento dialoga com a Ucrânia? Uma das principais desavenças russas na guerra síria é com a Turquia, que apoia algumas forças locais contra a ditadura de Assad. A Turquia é membro da Otan e funciona como uma espécie de fronteira de contenção à influência russa na região do Oriente Médio, explica Feliú, da USP. "A Guerra na Síria é emblemática do poderio militar russo para ir um pouco além do entorno estratégico do Leste Europeu", adenda.
O contrabalanço turco à influência do governo de Putin fica claro também na invasão da Ucrânia. O país condenou prontamente a ação militar russa e tem sido instado com frequência pela chancelaria ucraniana e pelo presidente Volodimir Zelenski a apoiar o país, por exemplo bloqueado o acesso de companhias russas ao seu espaço aéreo.
GUERRA DO IRAQUE (2003 a 2011)
Alegando que o Iraque possuía armas de destruição em massa --argumento que cairia por terra anos depois--, os EUA invadiram o país em 2003 e derrubaram o ditador Saddam Hussein. As tropas americanas permaneceram no país e foram retiradas em 2011. Retornaram, porém, em 2014, para combater o Estado Islâmico (EI).
Qual elemento dialoga com a Ucrânia? O conflito conversa menos com a Rússia e mais com os EUA, principais atores da Otan. Isso porque é um exemplo do interesse americano em empregar sua força militar numa crise. Feliú, da USP, lista três elementos que pesaram para o interesse dos EUA no Iraque: 1) lobby doméstico, especialmente de empresários; 2) interesse estratégico pelas reservas de petróleo e 3) a política externa americana que prioriza Israel (Estado rival do Iraque).
Além de sanções a empresas e indivíduos russos, da venda de armas para a Ucrânia e do envio de tropas para o entorno estratégico, o governo americano não parece disposto a investir com maior intensidade na defesa ucraniana. Em parte porque o país não é membro da Otan --a própria aliança havia dito que não enviaria tropas justamente por esse motivo no caso de uma invasão.
Bahia Notícias