Por Dorrit Harazim (foto)
A História é como uma faca: você pode usá-la para cortar pão, mas também para matar. O falecido Fritz Stern, eminente estudioso da História da Alemanha, dizia o mesmo de analogias históricas — elas tanto podem jogar luz e clareza sobre um tema como gerar contendas envenenadas de insensatez. No caso da invasão da Ucrânia por uma Rússia imperiosa presidida pelo czar moderno Vladimir Putin, tem as duas coisas. Com mandato eleitoral para ficar no poder até 2036, quando fará 84 anos, Putin decidiu recuperar pelo menos algumas zonas de influência perdidas com a implosão da União Soviética. Ou, pelo menos, tentar inverter os últimos 30 anos de arrogância militar por parte dos Estados Unidos e dos países europeus reunidos na Otan.
Para tanto, recorreu a uma “guerra de escolha”, e não “de necessidade”, repetindo terminologia usada por Richard Haass, presidente do Council on Foreign Relations de Nova York. Ao contrário das “guerras de escolha”, que em geral terminam mal para quem as lança, Haass designa como “guerra de necessidade” o recurso à força para a proteção da sobrevivência ou dos interesses vitais de um país. Cita como exemplo a entrada dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Decididamente, não é o caso da Rússia de 2022. O rolo compressor com que Putin atropelou a soberania territorial do país vizinho deixou não só 45 milhões de ucranianos sem chão — seja em fuga, seja de coquetel molotov em mãos —, como estonteou o planeta.
Os desdobramentos do ataque inicial têm mudado de gravidade a cada par de horas, arrastado para o conflito novos protagonismos e produzido riscos ainda desconhecidos. Portanto qualquer previsão seria temerária por ora. O que não muda são os horrores da guerra. “Eu não sei com que tipo de armamento a Terceira Guerra Mundial será travada”, escreveu Albert Einstein em 1949, “mas a Quarta será combatida com paus e pedras”. O cientista tinha visto a humanidade se aniquilar entre 1940 e 1945 e fazer uso decisivo das pesquisas sobre bombas atômicas que ajudou a formular.
Nesta semana, quando Putin disse que quem interferisse na invasão da Ucrânia sofreria “consequências nunca antes experimentadas na História”, foi fácil entender a referência a seu arsenal de 6 mil ogivas nucleares apontadas para o Ocidente. Ato deliberado. Das duas uma: ou o homem forte do Kremlin pensa realmente no impensável, ou fez uso apenas retórico do horror possível para se impor ao mundo.
No fundo, em graus variados, todas as potências nucleares pensam no armagedom que têm em mãos. Vale transcrever aqui um diálogo de 1972, bastante concreto, entre Richard Nixon, então presidente dos Estados Unidos, e seu secretário de Estado, Henry Kissinger. O tema era o atoleiro americano no Vietnã, e Nixon cogitava aniquilar, de uma só tacada, a ampla rede de diques, docas e ferrovias construídos pelos vietnamitas. A fita gravada desse diálogo reptiliano só foi tornada pública 30 anos mais tarde, graças à Lei de Acesso à Informação dos Estados Unidos. Nixon começa:
— [O bombardeio de diques] vai afogar a população?
— Cerca de 200 mil pessoas, responde Kissinger.
— Prefiro usar bomba nuclear. Você entendeu, Henry?
— Isso eu acho que seria demais.
— A bomba nuclear, por que ela incomoda você? Pelo amor de Deus, Henry, eu quero que você pense grande... O único ponto sobre o qual divergimos é em relação aos bombardeios. Você vive preocupado com as baixas civis...
— Os civis me preocupam porque não quero que o mundo se mobilize contra você por ser um açougueiro.
Até mesmo estadistas considerados gigantes, como Winston Churchill, questionaram a sensatez de manter algum cavalheirismo humanista em tempos de guerra. Numa minuta em sete pontos de suas anotações pessoais de 6 de julho de 1944, Churchill escreveu: “Necessidade de pensar a sério sobre uso de gás venenoso. Eu não recorreria ao expediente exceto se (a) a situação para nós for de vida ou morte ou (b) se o recurso encurtar a guerra em um ano (...). Plano de encharcar a Alemanha de gás deve ser estudado por analistas frios, e não por aqueles carolas que sempre aparecem uniformizados cantando hinos derrotistas”.
Toda guerra tem seu corolário de barbárie. Assim como toda guerra costuma ter dono. A da Ucrânia leva a assinatura única de Vladimir Putin, enquanto a invasão, ocupação e destruição do Iraque soberano em 2003 (outra “guerra de escolha”, sem motivo) foi obra do presidente americano George W. Bush. O tamanho da condenação mundial, ínfima no caso de Bush, as distancia na percepção global. O grande diferencial entre ambas é de fundo: o ato de guerra de Putin não permite divergências. O regime é autocrático. Os Estados Unidos de Bush eram, e ainda são, uma democracia.
Coube ao ex-guerrilheiro tupamaro, ex-presidente do Uruguai e humanista vitalício José Alberto “Pepe” Mujica, de 86 anos, refrasear as palavras de Einstein citadas no início deste artigo. Em comentário de dois dias atrás para a rádio Deutsche Welle, perguntou: “Será possível que a humanidade do futuro não possa abandonar os orçamentos militares, a loucura da guerra? Seguiremos na Pré-História, com a única diferença que a barbárie dos homens primitivos parece brincadeira se comparada à barbárie dos homens contemporâneos”.
O Globo