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sábado, fevereiro 26, 2022

Putin e a teoria da ferradura




Mas aí, na noite de quarta, veio a invasão da Ucrânia pela Rússia e o “todo mundo é ombudsman” instantaneamente se transformou em “todo mundo é analista internacional” — depois de terem sido, por dois anos, experts em pandemia. 

Por Ruy Goiaba 

Até a última quarta (23), o assunto e o título desta coluna seriam algo como “todo mundo é ombudsman” — aquele curioso fenômeno das pessoas que, quanto menos leem jornais, mais se acham habilitadas a dar palpite sobre como eles devem ser. Dias atrás, havia gente muito indignadinha nas redes sociais com a manchete “filho de vereador, campeão de caratê e empresário é preso com 720 kg de cocaína”: a tese é que o personagem da notícia era branco e, por isso, não estava sendo tratado como “traficante”. Jornalismo 101: ninguém se interessaria por um título na linha “traficante é preso com cocaína” (cachorro morde homem); a notícia está justamente no fato de ser empresário e filho de vereador (homem morde cachorro). Fora que, como disseram no Twitter, se a manchete fosse “traficante é preso” etc., acusariam a imprensa de esconder que o sujeito é empresário e filho de político. Preso por ter cão, preso por não ter cachorro.

Mas aí, na noite de quarta, veio a invasão da Ucrânia pela Rússia e o “todo mundo é ombudsman” instantaneamente se transformou em “todo mundo é analista internacional” — depois de terem sido, por dois anos, experts em pandemia. As redes sociais são melhores que o Instituto Universal Brasileiro: basta favoritar as sequências de tuítes certas (em geral, as erradas), que você já sai manjando muito de tudo e está apto a produzir suas próprias opiniões (em geral, idiotas). Só falta alguma entidade habilitada a conceder o DEPROMA de tudólogo, mas já devem estar providenciando isso. Em breve, vamos ter neurocirurgiões e engenheiros civis formados pelas redes, com a consequente alta nas estatísticas de prédios desabando e lobotomias acidentais. Só vantagens!

Já que todo mundo é analista internacional, ombudsman e sabe-se lá o que mais (“anyone can play guitar”, como diria o Radiohead), também me sinto autorizado a deixar meus dois centavos aqui. E eles são os seguintes: essa figura absolutamente odiosa e odienta que é Vladimir Putin mostra, mais uma vez, quão exata é a expressão “teoria da ferradura”. Você sabe do que se trata: um em cada ponta, os extremos da esquerda e da direita se aproximam tanto que acabam dizendo as mesmas coisas. E é sempre alguma estupidez premium.

De um lado, temos Jair Bolsonaro, essa mente brilhante, esse glorioso estadista, que acabou de ir visitar o tirano. Não só saiu dizendo que Putin “busca a paz” como afirmou que, “coincidência ou não”, parte das tropas russas havia deixado a fronteira ucraniana quando ele chegava a Moscou: estamos vendo o tamanho da coincidência agora. A nota do Itamaraty sobre o ataque, nesta quinta, 24, fala em “grave preocupação” e pede “suspensão imediata das hostilidades”, mas não condena a Rússia com todas as letras. Explica-se: “gurus” da direita como Steve Bannon, aquele de quem os bolsominions imitam tudo, acham Putin um cara batuta, politicamente incorreto, que não fica com esse negócio de tolerância com a população LGBT. Um sujeito “brilhante”, como descreveu Donald Trump.

Do outro, temos a maravilhosa esquerda brasileira, essa mesma que se apresenta como única opção democrática possível ao Imbecil Lombrosiano do Planalto enquanto afaga ditadores como Nicolás Maduro e Daniel Ortega — e, é claro, Vladimir Putin. Você nem precisa ler o que eles escreveram para saber de antemão que tudo é sempre culpa do imperialismo americano (nada contra se o imperialismo for russo, claro), mas cito mesmo assim: o PT no Senado condenou no Twitter (e depois apagou) “a política de longo prazo dos EUA de agressão à Rússia e de contínua expansão da Otan em direção às fronteiras russas”, e psolistas como a deputada Talíria Petrone lamentaram a “expansão estadunidense para o Leste, colocando um presidente fantoche” (como se Volodymyr Zelensky não tivesse sido eleito pelos ucranianos). Coitadinha da Rússia, né? O que são 190 mil soldados mobilizados contra a Ucrânia? Nada.

Eis aí mais uma utilidade da teoria da ferradura: além de ser o calçado favorito dessa gente, explica por que eles se deixam ser gostosamente montados por um personagem como Putin. O fetiche com o “homem forte” não deve perder sua força política tão cedo. E não custa lembrar: as pessoas que descrevi nos dois parágrafos anteriores apoiam exatamente os dois candidatos que estão à frente nas pesquisas eleitorais do nosso querido Bananão. Voltamos sempre, sempre, ao resumo feito por esse notável filósofo que é Gil do Vigor: o Brasil tá lascado.

A GOIABICE DA SEMANA

O troféu desta semana vai, com méritos, para o glorioso Ed Motta, que em suas lives — provavelmente aditivado pelo vinho — abriu aquilo que as histórias de Monteiro Lobato chamavam de “torneirinha de asneiras”. Atacou Raul Seixas por ter sido “funcionariozinho de gravadora” (na última vez em que chequei no Código Penal, não era crime), atribuiu seu sucesso a Paulo Coelho (Raul compôs sozinho vários de seus hits, como “Ouro de Tolo”) e, o mais impressionante de tudo, criticou as letras de Johnny Cash — sim, o mesmo Ed Motta que gravou letras inteligentes como “se arruma, aqui que tá bom, aqui tá dez” e outras mais brilhantes ainda, como BIRIJUM TCHIC PÁ BIRILUM UOOOU. Tenho zero simpatia por esses fãs de Raulzito que se vestem como o ídolo e ficam parecidos com o Patropi da Escolinha do Professor Raimundo, mas fecho com o maluco beleza nessa: imagine se olhar no espelho e se sentir um grandessíssimo Ed Motta.

Revista Crusoé

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