Certificado Lei geral de proteção de dados

Certificado Lei geral de proteção de dados
Certificado Lei geral de proteção de dados

sábado, julho 23, 2022

O suicídio da civilização




É preciso assegurar-nos continuamente de que estamos do lado da civilização. Senão, num mundo mais rico e poderoso, a desgraça será muito maior. 

Por João César das Neves (foto)

A situação mundial é, de novo, crescentemente preocupante: inflação explosiva, ruturas de fornecimentos e riscos de derrocada económica. Aumentam os avisos de uma possível fome global e faltas de energia no Outono. Já nesta Primavera a carestia gerou tumultos em países como Sri Lanka, Iraque, Sudão, Albânia, etc. Num mundo ainda a sair da pior crise dos últimos 75 anos, causada por um vírus microscópico, é fácil ficar assustado. Mas o verdadeiro perigo não é nenhum destes.

Se a humanidade descrevesse o pior pesadelo da história, certamente lembraria os terríveis quinze anos de 1914 a 1929, onde a sequência da Grande Guerra de 1914-18, a epidemia da Gripe Espanhola em 1918-20 e a derrocada financeira de 1929 conduziram à calamidade global dos quinze anos de 1930 a 1945, com a devastadora Grande Depressão e a maior catástrofe da humanidade, a 2ª Guerra Mundial. Hoje, cem anos passados, os terríveis quinze anos de 2007 a 2022 repetiram a primeira sequência, na ordem inversa: à crise financeira de 2007-09 seguiu-se a pandemia COVID-19 em 2020 e a guerra na Europa em 2022, envolvendo a Rússia contra a Ucrânia apoiada pela NATO. Será exagero dizer que olhamos de novo para o abismo?

Isso chega para mostrar que o nosso problema atual não são as subidas de taxas de juro ou aumentos no cabaz de compras. Aquilo que nos assola é, um pouco por todo o lado, os sintomas da doença que gerou a desgraça do segundo quartel do século XX, a que pudemos chamar “o suicídio da civilização”. Essa pandemia é fácil de descrever: tudo começa com uma perturbação ‒ gripe, guerra, falência ou carestia ‒ que afeta gravemente as populações e deixa os governos impotentes. Perante o inegável sofrimento, a irritação dos eleitores derruba os partidos tradicionais e promove forças extremistas, de esquerda ou direita, que, sem resolver nada, acrescentam raiva, medidas abstrusas e destruição das instituições, que conduzem à desgraça.

É inegável que hoje, em quase todos os parlamentos do mundo democrático, temos cópias dos radicais de há cem anos a celebrar vitórias; não por apresentarem melhores ideias e soluções, mas porque os problemas são difíceis e os eleitores querem punir os poderosos. Até regressam os demónios dos nossos avós: é indiscutível que Trump parece Mussolini, Putin parece Hitler e Xi Jinping parece Estaline; podemos descrever inúmeras diferenças, mas as semelhanças são apavorantes.

Existe alguma credibilidade neste paralelo centenário? De facto, o mundo de 2022 pouco ou nada tem a ver com o de 1929. Cem anos depois estamos melhor equipados tecnologicamente, mais sólidos nas nossas instituições e sobretudo mais ricos, até os mais pobres. Por isso, os sofrimentos das actuais bolhas, pandemia e guerra, mesmo dramáticos, são incomparáveis com os antigos. Os próprios clones contemporâneos das ideologias dos anos 1930 são muito menos credíveis que as originais, porque lhes falta a frescura da novidade. Dificilmente a história se repete. Apesar disso, o perigo é evidente.

Em certas dimensões, as coisas até estão piores hoje. Pela primeira vez desde 1962 uma potência nuclear ameaça outras de utilizar armas atómicas. Pela primeira vez desde 1952 um país abandonou a União Europeia e prepara-se para violar o acordo de saída. Pela primeira vez desde a fundação não existiu uma transferência pacífica de poder na presidência americana. Pela primeira vez na história do planeta a capital de um estado rico foi destruída por um furacão (Nova Orleans, 2005). Pela primeira vez na história da humanidade a maior economia do mundo é uma ditadura comunista.

Durante 75 anos após 1945 a questão central do mundo foi económica, porque o horror nuclear coibia a opção militar. Todos os países, cada um à sua maneira, investiram, comerciaram, globalizaram, desenvolveram. Mas os tumultos dos últimos quize anos foram crescentemente desafiando essa linha. Por isso, invertendo o Burke de 1790, podemos dizer que a era dos economistas e calculadores está a acabar; a da cavalaria regressa, e a glória da Europa renasce ensanguentada.

A civilização está em risco. A única forma de a preservar é confiar nela e, perante os seus inimigos, usar meios civilizados. Diálogo, paciência, confiança, serenidade, precisamente aquilo que é mais difícil em situações destas, são a nossa única salvação. Nunca podemos, em defesa da civilização, usar os meios e a fúria dos que se lhe opõem, porque isso destrói tanto a paz quanto eles. É preciso assegurar-nos continuamente de que estamos do lado da civilização. Senão, num mundo mais rico e poderoso, a desgraça será muito maior.

Observador (PT)

Em destaque

“Querem jogar no colo da direita, mas atentado não afeta anistia”, diz relator

Publicado em 16 de novembro de 2024 por Tribuna da Internet Facebook Twitter WhatsApp Email Valadares afirma que a anistia vai prosseguir no...

Mais visitadas