É preciso assegurar-nos continuamente de que estamos do lado da civilização. Senão, num mundo mais rico e poderoso, a desgraça será muito maior.
Por João César das Neves (foto)
A situação mundial é, de novo, crescentemente preocupante: inflação explosiva, ruturas de fornecimentos e riscos de derrocada económica. Aumentam os avisos de uma possível fome global e faltas de energia no Outono. Já nesta Primavera a carestia gerou tumultos em países como Sri Lanka, Iraque, Sudão, Albânia, etc. Num mundo ainda a sair da pior crise dos últimos 75 anos, causada por um vírus microscópico, é fácil ficar assustado. Mas o verdadeiro perigo não é nenhum destes.
Se a humanidade descrevesse o pior pesadelo da história, certamente lembraria os terríveis quinze anos de 1914 a 1929, onde a sequência da Grande Guerra de 1914-18, a epidemia da Gripe Espanhola em 1918-20 e a derrocada financeira de 1929 conduziram à calamidade global dos quinze anos de 1930 a 1945, com a devastadora Grande Depressão e a maior catástrofe da humanidade, a 2ª Guerra Mundial. Hoje, cem anos passados, os terríveis quinze anos de 2007 a 2022 repetiram a primeira sequência, na ordem inversa: à crise financeira de 2007-09 seguiu-se a pandemia COVID-19 em 2020 e a guerra na Europa em 2022, envolvendo a Rússia contra a Ucrânia apoiada pela NATO. Será exagero dizer que olhamos de novo para o abismo?
Isso chega para mostrar que o nosso problema atual não são as subidas de taxas de juro ou aumentos no cabaz de compras. Aquilo que nos assola é, um pouco por todo o lado, os sintomas da doença que gerou a desgraça do segundo quartel do século XX, a que pudemos chamar “o suicídio da civilização”. Essa pandemia é fácil de descrever: tudo começa com uma perturbação ‒ gripe, guerra, falência ou carestia ‒ que afeta gravemente as populações e deixa os governos impotentes. Perante o inegável sofrimento, a irritação dos eleitores derruba os partidos tradicionais e promove forças extremistas, de esquerda ou direita, que, sem resolver nada, acrescentam raiva, medidas abstrusas e destruição das instituições, que conduzem à desgraça.
É inegável que hoje, em quase todos os parlamentos do mundo democrático, temos cópias dos radicais de há cem anos a celebrar vitórias; não por apresentarem melhores ideias e soluções, mas porque os problemas são difíceis e os eleitores querem punir os poderosos. Até regressam os demónios dos nossos avós: é indiscutível que Trump parece Mussolini, Putin parece Hitler e Xi Jinping parece Estaline; podemos descrever inúmeras diferenças, mas as semelhanças são apavorantes.
Existe alguma credibilidade neste paralelo centenário? De facto, o mundo de 2022 pouco ou nada tem a ver com o de 1929. Cem anos depois estamos melhor equipados tecnologicamente, mais sólidos nas nossas instituições e sobretudo mais ricos, até os mais pobres. Por isso, os sofrimentos das actuais bolhas, pandemia e guerra, mesmo dramáticos, são incomparáveis com os antigos. Os próprios clones contemporâneos das ideologias dos anos 1930 são muito menos credíveis que as originais, porque lhes falta a frescura da novidade. Dificilmente a história se repete. Apesar disso, o perigo é evidente.
Em certas dimensões, as coisas até estão piores hoje. Pela primeira vez desde 1962 uma potência nuclear ameaça outras de utilizar armas atómicas. Pela primeira vez desde 1952 um país abandonou a União Europeia e prepara-se para violar o acordo de saída. Pela primeira vez desde a fundação não existiu uma transferência pacífica de poder na presidência americana. Pela primeira vez na história do planeta a capital de um estado rico foi destruída por um furacão (Nova Orleans, 2005). Pela primeira vez na história da humanidade a maior economia do mundo é uma ditadura comunista.
Durante 75 anos após 1945 a questão central do mundo foi económica, porque o horror nuclear coibia a opção militar. Todos os países, cada um à sua maneira, investiram, comerciaram, globalizaram, desenvolveram. Mas os tumultos dos últimos quize anos foram crescentemente desafiando essa linha. Por isso, invertendo o Burke de 1790, podemos dizer que a era dos economistas e calculadores está a acabar; a da cavalaria regressa, e a glória da Europa renasce ensanguentada.
A civilização está em risco. A única forma de a preservar é confiar nela e, perante os seus inimigos, usar meios civilizados. Diálogo, paciência, confiança, serenidade, precisamente aquilo que é mais difícil em situações destas, são a nossa única salvação. Nunca podemos, em defesa da civilização, usar os meios e a fúria dos que se lhe opõem, porque isso destrói tanto a paz quanto eles. É preciso assegurar-nos continuamente de que estamos do lado da civilização. Senão, num mundo mais rico e poderoso, a desgraça será muito maior.
Observador (PT)