O novo filtro para os recursos ao STJ é oportunidade de valorização da segunda instância, que passará a ser, para a imensa maioria dos casos, a última instância
Na reforma do Judiciário de 2004, criou-se um filtro para o recurso extraordinário. Para questionar perante o Supremo Tribunal Federal (STF) a constitucionalidade de uma decisão judicial, o autor do recurso passou a ter de demonstrar, a partir da Emenda Constitucional (EC) 45/2004, “a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso”. Já não bastava dizer, por exemplo, que o acórdão do tribunal tinha desrespeitado a Constituição. Para que o STF analisasse o caso, passou a ser preciso mostrar a existência de “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo”, conforme dispõe o atual Código de Processo Civil.
O requisito trazido pela EC 45/2004 era uma medida essencial para o bom funcionamento do Judiciário. Sem o filtro da repercussão geral, atribuía-se a um único tribunal o papel de revisor da constitucionalidade de todas as ações judiciais do País. É simplesmente impossível que o STF atenda a tal demanda.
No entanto, a reforma do Judiciário de 2004 não criou um filtro similar para o recurso especial, instrumento que serve para questionar, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), decisão judicial que desrespeita lei federal ou que lhe dá uma interpretação divergente daquela atribuída por outro tribunal. Essa lacuna foi suprida agora, com a aprovação pelo Congresso da EC 125/2022: “No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo tribunal”.
Segundo a EC 125/2022, há relevância nas ações (i) penais, (ii) de improbidade administrativa, (iii) cujo valor da causa ultrapasse 500 salários mínimos e (iv) que possam gerar inelegibilidade, bem como nas “hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do STJ”. A definição da relevância no próprio texto constitucional foi fruto da participação da sociedade civil nos debates legislativos.
A EC 125/2002 “é uma saída contundente para a crise de congestionamento e para a avalanche de casos que chegam ao STJ”, avaliou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, lembrando que o tribunal recebe anualmente mais de 10 mil novos processos por ministro. De fato, era imprescindível limitar a quantidade de recursos. Tribunais afogados em processos não funcionam bem: dificulta-se a apreciação cuidadosa de cada caso e multiplica-se a prestação jurisdicional atrasada, fora de um prazo razoável.
Mas o filtro da repercussão geral (STF) e da relevância (STJ) tem uma função que vai muito além da questão quantitativa. Ele preserva a natureza institucional dos tribunais superiores, que não são meras instâncias revisoras. O papel do STF e do STJ não é produzir sucessivas análises de ações cujo objeto se restringe aos interesses das partes. As cortes superiores têm a chamada função nomofilácica: assegurar a estabilidade e a previsibilidade da jurisprudência.
A EC 125/2022 pode e deve, portanto, ser ocasião de fortalecimento da segunda instância – (i) maior qualidade da análise das questões de fato e direito e (ii) maior sintonia de suas decisões com a jurisprudência dos tribunais superiores –, uma vez que ela a partir de agora será, para a imensa maioria dos casos, a última instância. Essa dinâmica é benéfica para o funcionamento de todo o sistema. O Judiciário não cumpre sua finalidade de resolver, com justiça e dentro de um prazo razoável, os conflitos sociais se uma decisão, para produzir efeitos, precisa passar antes por três ou quatro instâncias judiciais. Vale lembrar que, num Estado Democrático de Direito, existe a garantia do duplo grau de jurisdição: o direito de uma instância rever a decisão originária. Mas não faz sentido ter uma série infindável de controle. Assim, o novo filtro para os recursos do STJ conduz a este outro movimento, igualmente necessário: qualificar e valorizar a primeira e a segunda instâncias.
O Estado de São Paulo