Marco Aurélio NogueiraEstadão
Não seria necessário que diversos integrantes do futuro governo Bolsonaro insistissem na ideia de “libertar o Estado brasileiro do marxismo cultural” para que se percebesse que um espectro voltou a circular no Brasil em 2018. Esse espectro atende pelo nome de Karl Marx, filósofo e ativista político alemão (1818-1883), um dos fundadores do comunismo moderno e patrono da mais influente teoria política contemporânea.
O mundo comemorou, ao longo de 2018, os 200 anos de nascimento de Marx. Registros feitos por inúmeros seminários, congressos científicos, livros, artigos, filmes e entrevistas dedicaram-se a homenagear o pensador alemão e a verificar em que medida suas teses continuam a dialogar com a realidade do mundo atual.
MARX VIVE – O balanço foi positivo, mostrando que Marx, em que pese ao incontornável desgaste sofrido com a passagem da história, permanece vivo como intérprete do nosso tempo e, em particular, das transformações do capitalismo.
O Brasil não ficou fora das comemorações, mas terminou o ano com o reposicionamento político dos inimigos de Marx, concentrados agora no combate ao “marxismo cultural”, entendido como a disposição de ocupar totalitariamente os espaços públicos via controle da cultura e de suas instituições, da escola à imprensa e às artes, tudo devidamente concentrado em cercear a liberdade de pensar e falar, modelar mentes e impor agendas inadequadas à sociedade (gênero, aborto e clima, por exemplo). Na versão simplória corrente, essa preponderância do “marxismo cultural” estaria a impedir a “regeneração nacional” e a contaminar os diferentes âmbitos da vida familiar e do Estado, indo da escola à política externa.
DESCONHECIMENTO – O antimarxismo dos nossos dias não conhece Marx, não leu seus livros nem as análises de seus intérpretes. É pura ideologia, que opera por sobre a espuma levantada pela circulação das ideias marxistas e pelas disputas ideológicas em torno delas. O que lhe falta de rigor filosófico e conhecimento histórico é compensado por uma combatividade histriônica que pouco se importa com o que Marx realmente disse ou com o significado de suas proposições.
Despreza tudo o que o marxismo trouxe de contribuição crítica – por exemplo, sua teoria sobre o funcionamento do capitalismo – para vê-lo exclusivamente pela lente do militante revolucionário, devidamente desfocada. É um antimarxismo inquisitorial, que pressupõe que as ideias de Marx seriam tóxicas a ponto de impregnar aqueles que delas se aproximam, como um vírus.
NOVO LIVRO – Os antimarxistas teriam muito a aprender, por exemplo, com o livro do cientista político alemão Michael Heinrich, “Karl Marx e o Nascimento da Sociedade Moderna”, uma alentada pesquisa em 3 volumes que começou a ser publicada no Brasil pela Editora Boitempo.
A obra não é um panegírico e trata Marx de maneira fria e realista, situando-o na sua época e vendo-o sem qualquer mitificação. O pressuposto é simples: cada geração desenvolverá uma nova perspectiva em relação à vida, à obra e ao significado de Marx, conforme as transformações das condições históricas.
O nosso tempo trouxe consigo um Marx já bastante processado criticamente, saturado, manipulado de muitas maneiras. Já foi responsabilizado pelos crimes do stalinismo, por ditaduras, assim como já foi santificado e posto num pedestal como profeta da emancipação definitiva da humanidade.
UM CLÁSSICO – O Marx com que lidamos hoje é bem diferente daquele das décadas finais do século XX. As novas gerações o veem como um “clássico”, não como o mestre infalível da revolução, até porque a própria ideia de revolução se alterou bastante. A reprodução das condições gerais do capitalismo, porém, dão a ele uma atualidade que muitos outros clássicos não têm.
O primeiro volume do livro de Heinrich nos ajuda a inserir Marx na história e a vê-lo em sua pujança filosófica, em seu desejo de liberdade, em sua adesão progressiva ao humanismo materialista, em sua relação com a dialética de Hegel. É um Marx que assiste ao amadurecimento do mundo moderno e começa a interpretá-lo.
Mais tarde, já depois de ter escrito com Friedrich Engels o famoso Manifesto Comunista, Marx sai da Alemanha, passa por Paris e Bruxelas até se instalar em Londres. É o Marx mais conhecido, autor de O Capital. Crítica da economia política e de ensaios políticos, ativista do nascente movimento socialista. O Marx que passará para o século XX será sobretudo esse, devidamente incorporado primeiro pela cultura da socialdemocracia alemã e, depois, do comunismo soviético, do qual se espalhará pelo mundo.
ENTENDER O MUNDO – Diferentemente do que pensam os antimarxistas atuais, o marxismo continua a nos ajudar a compreender o mundo do capitalismo globalizado, mesmo que esse capitalismo seja mais potente e diversificado, disposto na vida como um sistema global irresistível, muito distante do capitalismo do século XIX, que Marx visualizava como fadado a ingressar numa crise terminal.
Mas não é preciso admitir o fim do capitalismo para concluir que esse sistema todo-poderoso não conseguiu até agora apaziguar suas contradições ou evitar crises recorrentes de natureza sistêmica. Desse ponto de vista, Marx errou e acertou. Suas descobertas não só foram incorporadas ao modo moderno de pensar a vida, como são fundamentais para que consigamos decifrar o estado em que se encontra a Humanidade ao final da segunda década do século XXI.