Por: Carlos Chagas
BRASÍLIA - Muito se escreveu, ano passado, sobre a crise do Ato Institucional número 5, completando quarenta anos. Seria hora de os departamentos de pesquisa da mídia começarem a preparar material, talvez mais denso ainda, sobre a crise de 1969.
Janeiro começou tenebroso, sob a sombra do mais violento instrumento de exceção de nossa História. Em dezembro o presidente Costa e Silva não resistiu ao ímpeto dos radicais incrustados em seu governo, assinou o AI-5 e imaginou poder dedicar-se à retomada do desenvolvimento, depois do retrocesso que foi o governo do antecessor nesse particular.
O marechal Castelo Branco havia inaugurado, com tanta antecedência, o neoliberalismo caboclo, que nem era rotulado assim. Através da batuta de Roberto Campos, ministro do Planejamento, direitos sociais foram suprimidos, a começar pela estabilidade no emprego para quem completasse dez anos na mesma empresa. Congelou-se o salário família e abriram-se as portas da economia brasileira ao saque das multinacionais. Foi uma estagnação geral. Quando Costa e Silva assumiu o governo, em março de 1967, prometeu dedicar-se à retomada do crescimento econômico e a devolver ao trabalhador parte de seus direitos.
A turbulência política nada permitiu e o segundo governo militar acabou enredado na ditadura total do AI-5. Mas havia a perspectiva de uma volta por cima na economia, através de Delfim Netto, Mário Andreazza e outros. Infelizmente, o projeto não andou, por conta da repressão e do acirramento dos ânimos. Tudo acontecia em matéria de truculência: censura, autocensura, prisões arbitrárias, dizem até que a tortura ensaiava seus primeiros passos. O problema era que não apenas os generais e coronéis em comando julgavam-se partícipes do poder discricionário. Até os cabos-corneteiros mandavam.
Costa e Silva foi percebendo que passaria à História apenas como ditador, sem ter realizado uma parte sequer de seus propósitos. Concluiu que o fator político-institucional obturava tudo o mais e dispôs-se a dar o dito pelo não dito. Ou o assinado pelo não assinado, já que toda a culpa pela repressão caía sobre seus ombros. Estimulado pelo vice-presidente Pedro Aleixo, a única voz que se levantara contra o AI-5, nos limites do governo, o velho marechal preparou o fim da exceção.
A partir de maio fez anunciar a convocação de uma comissão de juristas para elaborarem emenda constitucional adaptada à realidade moderna, onde se incluiria a extinção do AI-5. Não mais cassações de mandatos, nem recesso do Congresso e das Assembléias, muito menos intervenção nas universidades ou suspensão do habeas-corpus. Com a reforma da Constituição voltaria a prevalecer o Estado de Direito. Senão democratizado, porque as eleições presidenciais continuariam indiretas, pelo menos constitucionalizado voltaria o País a ser. Presidiu todas as demoradas reuniões dos juristas.
A pressão dos radicais não se fez esperar, liderada pelos três ministros militares, general Lyra Tavares, almirante Augusto Rademaker e brigadeiro Márcio Melo. E mais o chefe do Gabinete Militar, general Jaime Portella, e o ministro da Justiça, professor Gama e Silva. Do outro lado, apenas Pedro Aleixo e o chefe do Gabinete Civil, Rondon Pacheco. Mas com uma diferença: eles tinham o presidente Costa e Silva a seu lado, comandante de que ninguém ousaria discordar.
Os generais protestavam mas eram repelidos pelo chefe. Afinal, os juristas terminaram sua tarefa e a estratégia foi acertada: a 7 de setembro o presidente da República reabriria o Congresso e enviaria a emenda constitucional sem o AI-5 à consideração de deputados e senadores.
O problema é que, com 69 anos, Costa e Silva enfrentava profundo conflito. Era presidente por força de um movimento militar, devia o cargo ao que chamava de seu pano de fundo. Mas mostrava-se decidido a ficar contra os camaradas, enfrentá-los, como vinha enfrentando, e vencê-los, como venceria, em nome da volta ao Estado de Direito e o fim do AI-5. Assim ele raciocinava na parte consciente do cérebro, mas, no inconsciente, sofria por ver seus companheiros contra ele. A explicação foi do maior neurologista que o Brasil já teve, o dr. Abraão Ackermann, que o atendeu depois.
Tudo decidido, as providências tomadas e faltando uma semana para a reabertura do Congresso e a extinção do AI-5, Costa e Silva tem os primeiros sinais do que hoje se chama AVC e, naqueles idos, rotulava-se como trombose cerebral. Esse mal é solerte, pois não se instala de uma vez. Vem em insultos, primeiro pequenos, de cinco ou dez segundos em que o doente perde a fala, os movimentos e até a consciência, recuperando-os em seguida.
Chamado seu médico particular, o capitão Hélcio Simões Gomes, jovem e competente, logo a trombose foi detectada. Ele aconselhou o presidente a permanecer em repouso absoluto, a mandar chamar a Brasília uma equipe de neurologistas e aguardar o desenrolar do processo. Mas estava marcada para o dia seguinte a viagem ao Rio, onde uma semana depois se daria a solenidade de fim do AI-5. E o velho não aceitou.
Viajaria de qualquer forma, não daria aos adversários motivos para o adiamento da volta ao regime constitucional. Ninguém ousou contrariá-lo, apesar de os insultos se repetirem cada vez mais intensamente. No dia 30 de agosto, embarcou na base aérea da capital já com o rosto envolto num cachecol. Fazia frio, chovia e a desculpa era de que estava resfriado. Errado. Ele já não podia falar. O braço esquerdo começava a ficar paralisado.
Viajou deitado no BAC-Oneelevem presidencial, na cabine a ele reservada. No Galeão, as instruções eram para que um carro encostasse-se à escada da aeronave e ele embarcasse, evitando cumprimentos, guarda de honra e outras atividades protocolares. Fez questão de descer sozinho as escadas. No meio, um corneteiro desavisado dá o toque de presidente da República, o presidente para, infla o peito e assiste à banda de música engalanar-se também.
O voo para o Rio já fora uma temeridade. O esforço para ouvir o Hino Nacional em posição de sentido, mais ainda. Chegou ao palácio Laranjeiras extenuado, mas não aceitou ajuda. Subiu sozinho os degraus do andar térreo, entrou no elevador e, em seus aposentos, já completamente sem voz e sem movimentos num dos lados do corpo, por gestos pede ao ajudante de ordem, comandante Peixoto, papel e uma caneta. Tenta duas, três, quatro vezes assinar o nome.
Não consegue, o comando do cérebro já não chega sequer à mão boa. A caneta cai no chão e o presidente entra em choro convulsivo. Pouco depois caracteriza-se o estado de coma, que vai durar alguns dias. Costa e Silva sai da História, os ministros militares usurpam o poder, prendem o vice-presidente Pedro Aleixo e vão manter o AI-5. O que se segue é objeto para um segundo texto, mais carregado ainda de horror.
Apenas um último detalhe: mesmo sem falar, arrastando-se com dificuldade nos poucos minutos que lhe permitiam deixar o leito, Costa e Silva raciocinava bem. O aparelho receptor de seu cérebro funcionava, só o transmissor estava em curto-circuito. Exprimia-se por gestos. Semanas depois o ajudante de ordens pergunta: "Presidente, lembra do dia em que senhor adoeceu? Para que queria assinar o nome? Algum pagamento a fazer?"
Ele nega, balançando a cabeça.
"Queria assinar a emenda constitucional e acabar com o AI-5?"
A emoção volta a envolvê-lo, confirma que sim e, outra vez, começa a chorar...
Fonte: Tribuna da Imprensa
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