Lula falou uma fake news (mentira) quando afirmou que impeachment de Dilma foi golpe
Por Merval Pereira (foto)
Não bastassem comunicados oficiais do PT afirmando que a então presidente Dilma Rousseff foi tirada do governo por um golpe — o que poderia ser atribuído a uma das muitas facções petistas radicais —, o presidente Lula deu seu aval oficial a tal absurdo, afirmando, na presença do presidente da Argentina, Alberto Fernández, e do ex-presidente da Bolívia Evo Morales:
— Vocês sabem que, depois de um momento auspicioso no Brasil, quando governamos de 2003 a 2016, houve um golpe de Estado — disse Lula na Argentina.
Incluindo os anos Dilma no “momento auspicioso”, Lula, além de imodesto, fugiu da verdade.
Se houve alguma coisa fora da legalidade no impeachment de Dilma, foi a manobra do senador Renan Calheiros, referendada pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, para evitar a perda de direitos políticos da presidente derrubada, com uma leitura distorcida do artigo constitucional que transforma automaticamente a autoridade impedida em inelegível. Coube ao eleitorado mineiro cassar pela segunda vez a ex-presidente, candidata ao Senado derrotada nas urnas pelo voto direto.
Como é possível que um governo que pretende acabar com as fake news e combater a desinformação comece, ele mesmo, a tentar transformar mentira em verdade? O que Lula disse foi fake news. Vários órgãos, em diversos ministérios e secretarias governamentais, se preparam para divulgar a “verdade oficial”. Diz-se que a História é escrita pelos vencedores. A verdade, porém, é que Dilma foi deposta por um fato concreto.
Impeachment é sempre um processo político, e ela não escapou porque tinha relacionamento político frágil no Congresso. Deixou atrás um rabo grande de pedaladas fiscais, que foi devidamente punido. Mas não há como evitar a versão dos vitoriosos. Imaginemos o que fizeram com Lula: anularam as condenações por causa de atitudes do ex-juiz Sergio Moro e dos procuradores que, algumas vezes, realmente saíram das regras. Moro, durante anos, foi um herói nacional, com sentenças, inclusive as de Lula, referendadas por juízes de segunda e terceira instâncias e pelo próprio plenário do Supremo Tribunal Federal, embora alguns ministros tenham mudado de posição no meio do caminho.
Do jeito como as coisas acontecem no Brasil, se volta um governo de direita, Moro poderá ser reabilitado, e os petistas voltarão a ser acusados e presos novamente. O país precisa entrar numa normalidade de alternância de poder democrática, com projetos de Estado que possam ser continuados, sem revisionismos.
No romance “1984”, de George Orwell, o protagonista trabalha para o Ministério da Verdade, responsável pelo revisionismo histórico. Reescreve artigos de jornais do passado, destrói documentos não revisados, para não deixar prova de que o governo mente. Além de tentar emplacar uma versão mentirosa do impeachment, uma série de medidas legislativas está sendo proposta para que a verdade oficial prevaleça, como a retirada das redes sociais de conteúdos considerados perniciosos pelo governo, antes mesmo de intervenção judicial.
O “Pacote da Democracia” do Ministério da Justiça, uma nomenclatura orwelliana que é uma contradição em termos, está em preparação. A criminalização de postagens que incitem a violência contra as instituições pela internet seria feita sem nem mesmo passar pelo crivo do Judiciário. Se as ações do ministro Alexandre de Moraes, respaldadas posteriormente pelo plenário do Supremo, já são criticadas por parte da sociedade, o que dizer de uma decisão governamental sem a interferência desse mesmo Supremo já acusado — na maior parte das vezes injustamente — de politização?
Não é apenas no Ministério da Justiça que se engendra essa “orwellização”. Também na Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República foi instituído um “Departamento de Promoção da Liberdade de Expressão”, para fiscalizar peças de desinformação e promover políticas de igualdade social. Parece brincadeira, mas é grave e sério.
O Globo