Rosiene Carvalho
Folha
Para o sertanista Sydney Possuelo, 82 anos, as imagens de indígenas yanomamis desnutridos e doentes, divulgadas na última semana, o levaram de volta à década de 1990. Então presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), ele foi o responsável pelo trabalho de demarcação da Terra Indígena Yanomami, em 1992.
Atuando no campo indigenista há mais de 40 anos, Possuelo é considerado um dos principais nomes da área no país. Presidiu a Funai de 1991 a 1993, quando demarcou mais de 160 terras indígenas. Foi exonerado de cargo na fundação durante o primeiro governo Lula, em 2006, após ter feito críticas ao então presidente do órgão.
Em entrevista à Folha, ele afirma ser possível retirar os garimpeiros da região yanomami – desde que haja vontade política –, critica o desmonte da Funai e classifica a gestão Jair Bolsonaro (PL) como “a coisa mais terrível que ocorreu” para os povos indígenas.
Qual foi sua reação ao ver a condição dos yanomamis voltar ao que era antes da demarcação, com a terra tomada por garimpeiros e o efeito dessa invasão em seus corpos?
Fiquei profundamente chocado com as imagens. Poxa vida, estou revivendo aquele mesmo processo, será possível? Ano passado comemoramos os 30 anos da demarcação. O índice de mortandade estava muito alto. Isso nos espantou. Os povos indígenas mandaram uma infinidade de documentos à Funai, ao Ibama, à Presidência da República. Pediram socorro várias vezes e nada foi escutado. Aqueles corpos esquálidos, a mãe amamentando o filho tão esquelética quanto o menino é um drama terrível que nos envergonha perante o mundo.
Como foi promover a desintrusão e a demarcação do território yanomami, na década de 1990?
Naquela ocasião, havia a mesma situação: destruição, morte de criança, falta de alimento. Equipes da Funai e da Polícia Federal foram a campo, entraram em conflitos por vezes. Saiu sertanista morto e policiais feridos. Roraima tinha o aeroporto de maior atividade no país. Levantavam centenas de voos por dia, levando ou buscando coisas da terra indígena. Os postos de gasolina foram controlados, fechamos o espaço aéreo e havia certo monitoramento de alimentos. E os invasores ficaram sem abastecimento. Usamos aeronaves da Funai e da Força Aérea para retirar cerca de 40 mil garimpeiros, milhares de dragas. Fomos de garimpo em garimpo e eles se entregando. A desintrusão levou cerca de quatro meses.
E agora piorou?
Há indicações de que hoje traficantes atuam no garimpo. Se antes os garimpeiros eram indivíduos ou grupos de três ou quatro, hoje parece ter uma organização por trás. Alguém está ganhando dinheiro com isso. Precisamos desvendar e paralisar rapidamente. Se estão organizados, deixam mais vestígios na cidade. Têm de comprar gasolina, fazer a manutenção dos helicópteros. Então, não seria tão difícil o trabalho de inteligência detectar isso. O Estado brasileiro tem as condições necessárias para a retirada dos garimpeiros. Se quiser e houver vontade política, vai retirar. A presença do Lula na região foi importante. Passa a mensagem de que mudou tudo, de que ninguém aqui vai apoiar invasão. Acaba com a indiferença.
Na Raposa Serra do Sol, também em Roraima, há outras condições de proteção das comunidades. Por que os yanomamis têm maior vulnerabilidade?
São povos que dependem muito do meio ambiente, de água limpa, de solo para plantar e colher. Caça e pesca. Estão no extremo norte da Amazônia. Para sair dali, dependeriam de aviões e barcos. Cada índio depende do seu esforço para manter sua vida e a da sua família. Não tem supermercado ao lado. Quando não pode caçar e pescar, ele passa fome. Estou vendo levarem cestas básicas com arroz, macarrão e feijão, que inclusive modifica totalmente a alimentação deles e pode gerar doenças provocadas por nossa alimentação, que tem muito óleo, carboidratos.
Como o senhor avalia a política indigenista de Bolsonaro?
A coisa mais terrível que ocorreu contra os povos indígenas foram esses últimos quatro anos. Usaram a máquina do governo para destruir. O que a Funai fez é algo inacreditável na história indigenista. Não sou jurista, mas há formas de matar ou destruir uma comunidade, um povo. Pode pegar arma e dar um tiro em cada um. E tem as [formas] indiretas. Se você corta o alimento, o medicamento, não manda o médico, acaba redundando na morte deles.
O senhor considera proposital o que foi feito e desfeito na política indigenista?
Por que desmontar a Funai? Bolsonaro representa uma política adrede, preparada, pensada, organizada no sentido de exterminar os indígenas. Você não quer demarcar, não dá saúde, deixa as invasões trazendo doenças. Isso é para acabar. Não é diretamente um genocídio, não sei, talvez até seja. Mas, indiretamente, é. Na medida em que você facilitou a ação de agentes nefastos para aquela comunidade.
Como o senhor avalia a atuação da Funai na pandemia?
A pandemia foi um agravante, que envolveu também 700 mil brasileiros mortos. Mas não precisava dela para os índios. A Funai, feita para proteger os índios, passou a trabalhar contra. O meio ambiente foi destroçado por aquele rapaz, o homem da boiada [Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente]. Ele se elegeu deputado federal. Está protegido, mas deveria estar preso. Se você matar um tatu na rua, o Ibama te prende. Quantos milhares de tatus aquele homem não destruiu permitindo a devassa nas florestas, corte de madeira, roubo?
O que será dos yanomamis?
Como se pode ver neste e em outros episódios da história, depende do mundo branco que os oprime. Cabe um trabalho desse governo para manter vigilância e proximidade maior e, junto a eles, auxiliá-los a mudar o seu próprio destino. O que será deles no futuro depende do hoje. Se o Brasil respeitar os povos indígenas, podemos antever um futuro melhor. Desejo que o Lula faça isso e que se torne um ponto de honra para a população brasileira que ainda está distante. Porque os vizinhos dos povos indígenas são seus primeiros inimigos, que estão ali sempre criticando, invadindo.