O PT poderia ter se empenhado de verdade para o afastamento de Bolsonaro, mas lhe era mais conveniente deixá-lo sangrar
Por Eduardo Affonso (foto)
Golpista — adjetivo e substantivo de dois gêneros — é uma palavra polissêmica. Serve tanto para designar quem, valendo-se de práticas ardilosas, obtém proveitos indevidos (via WhatsApp, Tinder, comissão de formatura ou inconsistências contábeis) quanto aquele que, munido de armas ou discursos, tenta derrubar um governo constitucional e democraticamente eleito. Qualquer que seja o golpe — de Estado, da pirâmide, da barriga, do baú —, ele sempre consistirá em um(a) espertalhão(ã) querendo passar a perna em alguém.
Ainda há cerca de mil golpistas presos, em Brasília, pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro. Um golpe felizmente não consumado — mais pela forma atabalhoada como foi desferido do que propriamente pela resistência por parte dos que deveriam defender as instituições e o patrimônio público.
Pois o presidente Lula houve por bem deixar em segundo plano este golpe recente, concreto e de desdobramentos ainda imprevisíveis, e vociferar contra um suposto “golpe” levado a cabo seis anos atrás.
Lula sabe que não houve golpe algum em 2016, e sim um processo político e jurídico, conduzido pelo Congresso, seguindo todos os ritos legais. Em julgamento presidido pelo ministro Ricardo Lewandowski (da instância máxima do Poder Judiciário), culminou na condenação de Dilma Rousseff, por crime de responsabilidade.
Tudo bem que, estando em curso a retomada de tudo o que já não deu certo na gestão dilmista, Lula queira também reabilitar a presidenta impichada. Mas não precisava escantear a verdade nem chutar a canela de aliados.
Na hipótese de estar certo em sua narrativa, Lula estará cercado de golpistas — e não só os da Papuda, da Colmeia e das Forças Armadas. Seu vice, Geraldo Alckmin, apoiou o impeachment. Sua ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, também. Assim como os titulares da Pesca, André de Paula, e das Comunicações, Juscelino Filho. Sem falar naquela cujo apoio foi decisivo para sua vitória, a ministra do Planejamento, Simone Tebet — que golpeou o mandato de Dilma afirmando:
— Por todo o mal que causou e está causando à população brasileira, eu voto a favor do impeachment da senhora presidente da República; mas, mais do que tudo, voto na esperança, na esperança de melhores dias.
Os melhores dias duraram pouco. O suficiente para que Michel Temer, responsável pela trégua entre duas calamidades, se sinta injustiçado e lembre que Lula “parece insistir em manter os pés no palanque e os olhos no retrovisor, agora tentando reescrever a História”.
O PT poderia ter se empenhado de verdade para o afastamento de Bolsonaro, mas lhe era mais conveniente deixar o ex-presidente sangrar (e o país se exaurir junto) do que enfrentar o general Mourão nas urnas. E ficaria difícil sustentar a tese de que o impedimento de adversários era legal, mas virava golpe quando a vítima fosse um dos seus.
Lula espalha fake news e insulta (insinuação de participação em golpe é insulto, não?) um ministro do STF.
Vimos esse filme de 2018 a 2022, com elenco pior e montagem mais tosca. Mas o mesmo roteiro: um presidente que, em vez de conciliar, aposta na separação. Visando apenas a ganhos políticos imediatos.
Tirando os golpes do destino, de judô ou de misericórdia, em todos os outros (reais e imaginários), há sempre um espertinho querendo levar vantagem.
O Globo