Os velhos – embora em versões totalmente modernizadas – carros de combate ainda têm muito a dar no campo de batalha; a reação de russos é a prova.
Por Vilma Gryzinski
“Arrasado, ligeiramente radiativo, sobre terreno derretido”. Assim, em termos brutais, um dos “especialistas” que vivem falando atrocidades na televisão russa, o apropriadamente chamado Ievgueni Satanosvki, previu que deveria ficar o Bundestag, o Parlamento alemão.
Invocar o uso de armas nucleares virou uma banalidade nos meios russos e o atual tom de histeria reflete a raiva com a decisão – ou concessão – finalmente tomada pelo primeiro-ministro alemão, Olaf Shultz, de mandar tanques Leopard 2 para a Ucrânia. Foram os americanos que arrancaram o compromisso de Shultz, esperando até que ele recuasse para fazer seu próprio anúncio do envio de 31 tanques Abrams M1.
Ao todo, “com nossos aliados”, a Ucrânia receberá dois batalhões de carros de combate de primeira linha, disse Shultz, depois de meses procrastinando, com medo de ativar os gatilhos de uma III Guerra Mundial – ou simplesmente lembrar o que aconteceu da última vez em que tanques alemães enfrentaram um exército russo.
Quando a guerra começou, há onze meses, os tanques pareciam ser uma arma do passado. As longas fileiras de blindados russos nas estradas ucranianas lembravam imagens da II Guerra Mundial. Treinados em táticas flexíveis, os ucranianos só pediam drones, Javelins e NLAWS, as armas portáteis que explodiam os tanques inimigos como patinhos na lagoa e foram importantes para impedir que os russos tomassem Kiev e decapitassem o governo, o que selaria a ocupação.
Hoje, a situação é diferente: os russos conquistaram um semicírculo equivalente a 20% do território ucraniano e as forças locais saíram da defensiva para a ofensiva. Para isso, precisam do poder de fogo e da capacidade de penetração que só forças blindadas podem oferecer.
Por causa da blindagem e da quantidade de equipamentos que levam, os tanques modernos são mais pesados. O Leopard 2 – Leo, para os íntimos – pesa 50 toneladas. A couraça é revestida de urânio empobrecido, alterado para ser mais inexpugnável. Só a ideia de que é um carro de combate sobre esteiras tem algo em comum com o primeiro tanque de guerra, encomendado em 1915 por um certo Winston Churchill, que ocupava um posto equivalente ao de ministro da Defesa.
Os projetistas William Tritton e Walter Wilson inventaram um dispositivo rolante adaptado a um veículo blindado que permitiria avançar sobre as trincheiras que mantinham o mortífero e constante impasse da I Guerra Mundial.
Os tanques continuaram a pertencer à arma da Cavalaria e não foram amplamente aceitos logo de início. George Patton, com seu estilo dramático e o poder excepcional conferido praticamente por decreto, teve que usar ambos para acabar com as pretensões dos generais americanos que não abriam mão de seus adorados cavalos em plena II Guerra Mundial.
A Alemanha nazista os transformou no sinônimo da blitzkrieg, a guerra relâmpago diante da qual qualquer resistência derretia e à qual só conseguiu se opor a União Soviética, armada pelos Estados Unidos, já na metade final da guerra.
A situação hoje é inversa: os russos são os agressores e os alemães têm medo dos paralelos históricos, amplamente invocados pela turma que fala grosso na televisão.
“Tanques alemães com cruzes em suas couraças novamente avançarão pela Ucrânia para atacar soldados russos”, disse Satanovski. “A União Soviética bombardeou Berlim em 1941. E para mim isso é um sinal de que o Reichstag, ou Bundestag, que hoje o substitui, simplesmente não deveria continuar de pé”.
Ele está, obviamente, errado e faz parte de um coro cujo funcionamento já se tornou conhecido: qualquer novo envolvimento de países ocidentais no conflito iniciado pelos russos é apresentado como uma provocação que acabará levando ao holocausto nuclear.
Embora dê um medo danado, não é verdade. Com todo o formidável erro de cálculo que a invasão da Ucrânia envolveu, Vladimir Putin e sua cúpula continuam a ser agentes racionais, perfeitamente conscientes do preço de uma retaliação americana a um ataque nuclear contra um aliado europeu.
Ao mesmo tempo, muitos temem que essa racionalidade vá diminuindo à medida em que as conquistas russas – e seu consequente fiasco histórico – pareçam ameaçadas.
Para que os ucranianos revertam a situação no campo de batalha, especialistas em estratégia calculam que precisariam ter no mínimo cem tanques. A Alemanha vai fornecer 14, não exatamente um game changer, um elemento que vire as regras do jogo. Antes mesmo da autorização da Alemanha, a Polônia, que é o país importante com mais motivos para se sentir diretamente ameaçado pelos russos, já havia prometido também todo o seu contingente de 14 Leopards da última geração (os modelos anteriores estão em processo de reequipar o Exército brasileiro). Com a participação britânica – 14 unidades –, mas as contribuições menores de países que vão da Dinamarca a Portugal, os ucranianos terão uma força bem razoável.
Acima do Leopard, segundo os especialistas, fica apenas o Abram M1, capaz de detonar um tanque inimigo a 2,5 quilômetros de distância.
A última grande batalha de tanques da história foi na guerra para expulsar o Iraque do Kuwait invadido, entre 26 e 27 de fevereiro de 1991. O terreno desértico e a disparidade em matéria de capacidade de combate propiciaram um confronto em grande escala e um resultado inacreditável: os iraquianos perderam 160 tanques, mais 160 veículos blindados, e os americanos sofreram a perda de um tanque Bradley.
Nada parecido com isso vai acontecer na Ucrânia. Os russos continuam a ter a superioridade em material bélico, mesmo que suas inovações tecnológicas tenham se revelado ridículas. Sites especializados em confirmação visual de perdas calculam que os russos já perderam mais de 1 500 tanques na Ucrânia e continuam a ser uma força respeitável.
Para os mais conspiracionistas, a hesitação no fornecimento de tanques à Ucrânia foi debitada ao receio de que o resultado acabasse sendo “bom demais”, ou seja, encurralasse a Rússia numa situação de derrota humilhante.
Mas o fato é que a guerra vai completar um ano e ainda está longe de ser definida.
O movimento mais aguardado é uma nova ofensiva da Rússia contra Kiev, tendo absorvido os erros cometidos na primeira.
Haverá tempo para que os novos tanques cheguem à Ucrânia e seus operadores sejam treinados são questões que os especialistas estão escrutinando no momento.
Para a Ucrânia, fazem a diferença entre a independência e a opressão estrangeira.
Revista Veja