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domingo, agosto 29, 2021

Um golpe em marcha

 



Por Mauro Iasi (foto)

Bolsonaro não se preparou para governar, sua intenção desde o início foi produzir as condições para uma ruptura institucional, numa espécie de saudosismo de 1964. Tais condições pareciam ser uma radicalização nas pautas morais e reacionárias e a construção de uma narrativa, na qual o miliciano que ocupa a presidência, estaria sendo impedido de governar pela interferência de outros poderes, o Legislativo e o Judiciário.

As coisas não aconteceram como imaginava o presidente de extrema direita por alguns motivos. Em primeiro lugar, a ruptura institucional que levaria a um governo de força necessitaria de dois apoios essenciais: o grande capital e as Forças Armadas. Temos afirmado que em nenhum desses polos o presidente teria um respaldo homogêneo. A grande burguesia monopolista se divide entre a manutenção do presidente, que opera sua pauta, e a necessidade de afastá-lo porque o mandatário e suas intenções rupturistas criam uma grande instabilidade, que prejudica o bom andamento da mesma pauta. As Forças Armadas transformaram-se em avalista do presidente, uma espécie de garantia ao grande capital e aos outros poderes de que o presidente se manteria no cercadinho da institucionalidade apesar de suas bravatas. Os militares são mais que avalistas, participam diretamente do governo e tem demonstrado que seus interesses extrapolam o corporativismo e se aproximam de interesses econômicos e políticos que compartilham com o bolsonarismo.

Este jogo de forças produziu um pacto protagonizado pelos militares, o Judiciário e o Legislativo que manteve até agora o miliciano. O descontrole da pandemia, os desvios e desmandos na vacinação e a Comissão Parlamentar de Inquérito jogaram água no moinho daqueles que querem ao afastamento do presidente, ou desgastá-lo para buscar uma alternativa em 2022. O problema é que quanto mais o cerco se fecha, mais o presidente ameaça uma ruptura. A grande questão é, portanto, se o miliciano no governo tem ou não condições de desfechar seu golpe e efetivá-lo na formação de um governo de força, mesmo sem o apoio ou respaldo integral do grande capital, que parece preferir uma continuidade institucional que o favorece e não parece ameaçada em 2022.

Esta não é uma questão tão simples. Acredito que a resposta tem que partir de duas constatações: primeiro, o presidente tem meios de iniciar uma ruptura e provocar uma fratura com consequências imprevisíveis; segundo, talvez, o golpista não tenha apoio para efetivar o golpe em um novo governo fundado numa institucionalidade de exceção.

Vamos nos deter, primeiramente, no plano que parece estar em andamento e verificar se os recursos disponíveis permitem a aventura golpista. O presidente tem demonstrado ser incontrolável, isto é, os que defendem a continuidade do pacto tendem a perder espaço para a polarização que colocara em rota de colisão os que estão com Bolsonaro e os que estão contra ele. Paralelamente, o governo de extrema direita acentuará as tensões e a narrativa de uma conspiração, convocando sua base social e política para checar as forças que dispõe. Por enquanto, e isto pode mudar, o governo dispõe dos votos necessários para barrar um processo de impedimento na Câmara dos Deputados. No entanto, diante de um relatório final da CPI que, ao que se supõe, indica o indiciamento do presidente por um certo número de delitos, pode haver um deslocamento desta camada fisiológica que não guarda nenhuma coerência a não ser com sua própria sobrevivência.

Ao nosso ver, o isolamento do presidente e a possibilidade de deposição são os gatilhos para o plano já em andamento. Caso sobreviva ao impedimento, o pretexto seria a mítica possibilidade de fraude nas eleições na ausência de um voto impresso. Seja como for, a ameaça de ruptura permanece como uma ameaça constante. Como dissemos, a aparência da figura tosca e aparvalhada no ato de governar não pode obscurecer a capacidade do conspirador e dos meios que dispõe para agir.

Assusta-me a confiança que os setores políticos, incluindo aí a centro esquerda que acomodou-se ao campo institucional da ordem burguesa, tem na solidez de um regime político que aponta sérios indícios de corrosão eminente. Tal postura esta na base da inação que espera que o calendário e as eleições de 2022 chegue como solução redentora, independente do atual presidente chegar ou não em pé no pleito.

Essa convicção trabalha apenas com alguns fatores, todos eles no campo da institucionalidade, até porque ela mesma – a centro esquerda – escolheu esse campo e abdicou de qualquer outra via de enfretamento e de busca pelo poder do Estado. Entretanto, este recuo e a abdicação ao uso da força foram unilaterais. As classes dominantes nunca o fizeram, certamente a extrema direita nunca o fez. As classes dominantes e suas personificações políticas, midiáticas, jurídicas, operam um sofisticado esquema que navega dentro e fora da institucionalidade e mesmo da legalidade, estão sempre preparadas e dispõe de recursos para garantia da ordem. Quando acreditaram ser necessário operaram um golpe fundado em uma escandaloso casuísmo jurídico, seja pelo pretexto das pedaladas que afastaram a presidente eleita em 2014 ou a farsa jurídica que afastou o ex-presidente Lula da disputa eleitoral de 2018.

Por seu lado, o bolsonarismo que dirige sua intencionalidade na ruptura, centra suas preocupações na aglutinação de recursos de força. Acobertado pelo pacto que lhe deu uma sobrevida institucional, o miliciano se aproveita dos termos do pacto para manter-se enquanto prepara essa ruptura. E como ela estaria sendo construída?

Para seu intento o bolsonarismo precisa de um certo apoio popular e de esquemas armados. É verdade que, no que tange à popularidade, o presidente perdeu espaço, mas arrisco dizer que o núcleo central do apoio de massas do bolsonarismo ainda sobrevive. O pacto que pretendia controlá-lo golpeou não mais que superficialmente as máquinas de fake news e os meios de manipulação em massa, por exemplo, em certos setores evangélicos. Ao lado disso, existe o apoio das milícias, de parte dos aparatos policiais e de segmentos das Forças Armadas.

Na lógica do miliciano, o país está dividido e a crise gera condições de polarização e confronto que serão decididas pela força. Na famosa reunião ministerial que se tornou pública, o presidente insistiu na ideia do armamento de setores da população, claramente vinculando esse armamento à defesa da população contra uma ditadura. Agora convoca seus apoiadores para sair em defesa daquilo que ele denomina de um “contragolpe”, reforçando a narrativa segundo a qual estaria em marcha um golpe do judiciário para afastá-lo.

Um dado deve ser considerado neste possível cenário. Houve um enorme crescimento no número de registros de armas no Brasil no atual governo, que, como sabemos, tentou sempre que pôde facilitar o acesso às armas. O número de registros de armas na Polícia Federal passou de 637.972 pedidos em 2017 para 1.056.670 pedidos em 2019 e 1.279.941, em 2020. Só no Distrito Federal, esses pedidos de registros saltaram de 35.693 para 236.296, num crescimento de 562%. Os pedidos de registro, que em 2018 eram de 46 armas por dia, saltaram para 378 pedidos diários em 2019. Sabemos que ao lado dos pedidos legais dos chamados cidadãos de bem, as milícias tem outras fontes de armamento, como parece indicar o arsenal descoberto na casa vizinha à do presidente em seu condomínio no Rio.

Ao meu ver, isto significa que a convicção de certos segmentos políticos de que o golpe estaria descartado pela falta de respaldo político (seja no Parlamento ou no grande capital), ou pela ação do poder judiciário como guardião de uma ordem constitucional estabelecida, apresenta-se como uma grossa ingenuidade. Os que planejam golpes devem levar em conta respaldos políticos, mas sabem que a ação de força é decisiva. Creio que o bolsonarismo aposta nesse cenário e na ideia de que, uma vez dada a partida para uma confrontação armada, econseguirá o apoio que lhe falta. Existe a possibilidade do blefe, isto é, o bolsonarismo não contaria com o apoio que alardeia nas milícias, corporações policiais e nas Forças Armadas. No entanto, para seu intento, bastaria que segmentos destas corporações se movessem e que os demais não tivessem disposição em promover a resposta armada em defesa de uma ordem política em ruínas.

Resta a posição dos interesses econômicos dominantes. Acredito que o grande capital, por ora, opera na intencionalidade de manter a ordem política e institucional vigente, no entanto não podemos desconsiderar a variada gama de formas políticas aos quais estes interesses se acomodam. O grande capital se desenvolveu satisfatoriamente durante a Ditadura Militar inaugurada em 1964, sobreviveu à sua queda e encontrou um terreno favorável à acumulação durante a transição controlada e sob tutela militar, e mesmo no máximo desenvolvimento de uma democracia limitada nos governos do PT. Por que não buscaria entender-se com um governo de extrema direita à cabeça de um Estado forte se este acabasse por se impor pela força? O capital não tem princípios, tem interesses.

Há um golpe em marcha. Ele pode fracassar, pode não passar de um blefe ou pode ser uma vitória de Pirro, na qual o golpista não consegue montar no tigre que pretendia cavalgar. A institucionalidade burguesa pode se antecipar e frustrar a tentativa golpista, afastando o presidente e prendendo os que iniciarem alguma ação mais decisiva de reação. É possível. Mas, até agora, há um golpe em marcha, de um lado os que apostam no conflito e se armam, de outro aqueles que já preparam uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para ser enviada a um Supremo Tribunal Federal que pode não mais estar lá para recebê-la.

Boitempo

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