Há dois pesos e duas medidas no que à liberdade de expressão diz respeito. Quando a ofensa é a sentimentos religiosos a liberdade parece ser absoluta. Noutros âmbitos criminaliza-se o discurso de ódio.
Por Pedro Vaz Patto (foto)
Na Suécia, um dirigente político de extrema-direita procedeu à queima pública de um exemplar do Alcorão. Como seria de esperar, muitas entidades islâmicas e representantes de governos de países de tradição islâmica declararam a sua profunda indignação perante tal gesto, salientando que esse ato foi praticado perante agentes policiais que nada fizeram para o impedir. O ministro dos negócios estrangeiros da Turquia cancelou até uma sua visita oficial à Suécia por esse motivo. Em resposta, o primeiro-ministro sueco declarou repudiar tal gesto, que considera ofensivo para com pessoas de fé islâmica, mas nada poder fazer para o impedir, pois ele está coberto pela liberdade de expressão que deve ser respeitada.
Esta conceção absoluta da liberdade de expressão não vem sendo seguida noutros âmbitos, na Suécia e noutros países europeus. Muitos destes países criminalizam o chamado “discurso de ódio”, que o Código Penal português define, no seu artigo 240.º, como o incitamento ao ódio ou violência, assim como a injúria ou difamação, contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica. A Comissão Europeia propõe atualmente alargar a lista de crimes puníveis pelo direito europeu de modo a nela incluir esses tipos de crimes relativos ao “discurso de ódio”. Na verdade, ninguém tem reclamado a liberdade de expressão para justificar um insulto racista, por exemplo. Esse insulto será punido, e não apenas objeto de reprovação moral (como a do primeiro-ministro sueco quanto à queima do Alcorão).
Mas há até quem considere que esta criminalização do discurso de ódio tem servido de pretexto para tentar impedir a expressão de ideias contrárias à cultura hoje dominante, como as relativas à prática homossexual. Um dos primeiros casos desses ocorreu, precisamente, na Suécia, com a condenação de um pastor protestante (posteriormente absolvido em recurso) que citou passagens bíblicas que censuram tal prática. Mais recentemente, foi, pelos mesmos motivos, acusada (mas absolvida em julgamento) uma antiga ministra finlandesa. E assim também o autor de um artigo que numa revista francesa católica tradicionalista argumentou contra a legalização do casamento homossexual (também acusado e absolvido em julgamento).
Parece, assim, haver “dois pesos e duas medidas” no que à liberdade de expressão diz respeito. Quando está em causa a ofensa a sentimentos religiosos, como sucede neste caso da queima do Alcorão, a liberdade de expressão parece ser absoluta. Noutros âmbitos, a criminalização do discurso de ódio parece ir longe de mais no limite à liberdade de expressão.
Mas onde poderemos traçar uma fronteira que concilie a liberdade de expressão, alicerce de uma sociedade livre e democrática, e o respeito da dignidade das pessoas e comunidades, que envolve também o respeito da liberdade religiosa?
Há que distinguir a livre discussão de ideias (sobre a religião, sobre o cristianismo, sobre o Islão, sobre a prática homossexual) do que é ofensivo para com as pessoas, e também para com os seus sentimentos religiosos.
Às ideias (mesmo que sejam erróneas, injustas, chocantes ou absurdas) pode responder-se no plano do debate racional e da argumentação. Esse debate é sempre salutar numa sociedade aberta, livre e democrática. Ninguém deve recear esse debate, sobretudo quem está seguro de que, como afirma a declaração do Vaticano II sobre liberdade religiosa, «a verdade se impõe pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte».
Outra coisa são os insultos. Aos insultos não pode responder-se no plano do debate de ideias. Aos insultos não pode responder-se senão com o silêncio ou com outro insulto. Um insulto pode ferir tanto ou mais do que uma agressão física. E uma ofensa aos sentimentos religiosos (que se distingue da crítica a uma qualquer religião) também pode ferir tanto ou mais do que uma ofensa pessoal. E dessa forma se gera o ódio e se facilita, mais ou menos diretamente, a violência. Não é assim que se fortalece a sociedade livre, aberta e democrática.
É verdade que esta distinção, entre a crítica e discussão de ideias e o insulto, nem sempre é fácil. Mas não podemos recusar essa distinção, para salvaguardar a harmonia social, a dignidade humana, a paz e a liberdade.
À luz destes princípios, parece evidente que a queima pública de um livro sagrado de uma qualquer religião não se situa no plano do debate das ideias; é, pura e simplesmente, uma provocação e um insulto. Não é uma crítica à religião islâmica a que possa responder-se no plano da discussão racional Há o risco de a essa provocação se responder com outra provocação, e até com a violência, reações que de modo algum se justificam e são igualmente de condenar.
Quando estão em causa insultos e provocações, e não a crítica situada no plano da discussão de ideias, justifica-se a criminalização da ofensa a sentimentos religiosos, que está prevista, em termos diversificados (que poderão, ou não, abranger situações como a da queima pública de um livro sagrado), no Código Penal português (nos seus artigos 251.o e 252.o), tal como na legislação penal de outros países europeus (Espanha, França, Itália, Alemanha, etc.).
Em suma, a liberdade de expressão não justifica tudo, nem toda e qualquer ofensa aos sentimentos religiosos.
Observador (PT)