Corromper eleição com dinheiro, assédio, violência e desinformação
Por Conrado Hübner Mendes* (foto)
Victor Nunes Leal, maior ministro da história do STF, escreveu "Coronelismo, Enxada e Voto", clássico de interpretação do Brasil. Militares não suportavam sua inteligência jurídica e seu desprezo à delinquência armada. Foi sequestrado por sargentos revoltosos em 1963 e aposentado na marra pelo AI-5 em 1968.
O livro de Nunes Leal descreveu o sistema eleitoral corrupto da primeira República, fundado na barganha entre o poder privado local, do coronel, e o poder público central. Vitórias eleitorais dependiam da pobreza, da força bruta e do dinheiro. A representação política resultante, baseada no mando e na obediência, retroalimentava o sistema patrimonialista.
Eleições no Brasil tornaram-se gradualmente mais competitivas e democráticas a partir de 1988. Mas Jair Bolsonaro veio para resgatar nossa pré-modernidade eleitoral à máxima potência. Todos os seus atos na disputa eleitoral reavivam a tradição do consórcio entre poder privado rudimentar e um governo incivil e insubmisso à lei. Com tecnologia do século 21.
Andreas Schedler, especialista sobre autoritarismo eleitoral, descreve o "menu de manipulação" usado por autocratas. Entre outras coisas, eleições "justas e livres" precisam prevenir a intimidação do eleitor, a compra do voto e a tutelagem do processo. Além de proteger a capacidade de cidadãos conhecerem as alternativas.
O autocrata brasileiro corrompe cada um desses pilares da alternância democrática.
Primeiro, o Secretão deu ao governo ferramenta de compra de voto de parlamentares venais. Até da oposição. Assim conseguiu aprovar reforma constitucional extravagante no seu conteúdo e no seu procedimento (PEC Kamikaze). Violou princípios de integridade eleitoral e do processo legislativo. Com o Auxílio Brasil, distribui feijão a quem tenta sobreviver, mas só até dezembro. E distribui prata para quem tem poder de ajudar o governo.
O auxílio, justificado sob pretexto jurídico espúrio da "emergência", não serve para tirar ninguém da pobreza. Almeja que o pobre faminto sobreviva para votar. Não faz política pública, não constrói ponte para o desenvolvimento nem abre horizonte para que cada um escolha como viver. O miserável planeja, quando muito, onde buscar comida no dia seguinte. O governo lhe oferece uma fila da sopa. Depois de dezembro, nem isso.
Segundo, Bolsonaro promove ataque diuturno às urnas, ao TSE e ao STF. Deslegitima a competição que ele venceu no passado e pretende disputar nesse ano. Não tem prova nem convicção sobre qualquer fraude, apenas medo de perder e interesse de continuar onde está.
O assédio leva ao limite da resistência a governança eleitoral. O TSE, diante da marginalidade serial, sequer teve força e coragem de concluir inquérito que apura ataque às urnas. E prepara segurança de guerra para sobreviver, mais uma vez, ao 7 de setembro insuflado pelo candidato cuja elegibilidade segue de pé. O que dizer da ilicitude da reunião com embaixadores, onde avisou que eleição no Brasil não merece ser respeitada?
Terceiro, faz campanha que customiza desinformação e ódio em disparos massivos por via digital. E ainda financiado por recurso não sabido nem declarado. Passou impune em 2018, não tem razão para fazer diferente em 2022. Daí seu incômodo com as modestas medidas tomadas por Telegram e Whatsapp para mitigar a prática.
Bolsonaro nos empobreceu: derrubou PIB per capita de US$ 9150 para US$ 7500 e a renda média do brasileiro. Pobres pagam 2000% a mais de imposto de renda em razão da simples falta de correção da tabela do IR. Extinguiu programa alimentar, 33 milhões de pessoas passam fome. Pandemia e guerra não explicam a magnitude da tragédia, mostram economistas.
Bolsonaro nos embruteceu: não bastasse a cultivada indiferença às mortes da pandemia, multiplicadas por ostentatória omissão estatal, armou "maioria de bem" para lutar "contra o mal". O "bem" já está matando.
Bolsonaro achatou nossa liberdade: todos os índices globais de erosão democrática destacam o Brasil no topo. Sem exceção. Mas o liberticídio continua a ser defendido, veja só, em nome da liberdade. Não exatamente a sua liberdade, eleitor.
O projeto de empobrecimento, embrutecimento e autocratização seria, para muita gente, recompensado com o fim da corrupção. Como se corrupção diminuísse com aumento do PIBB, o Produto Interno da Brutalidade Brasileira.
A corrupção está aí, vitaminada, remoçada. Contamina essas eleições como nenhuma outra desde 88. Bolsonaro empenha orçamento contra a democracia e o autogoverno coletivo. Depende do dinheiro, da força bruta e da pobreza esse novo coronelismo. Como o velho.
O papel das Forças Armadas na corrupção bolsonarista? Terá capítulo só seu.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
Folha de São Paulo