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quarta-feira, dezembro 29, 2021

“Revolução liberal’, ilusão ou bravata




Guedes cumpriu o velho papel de vender sonhos a uma elite econômica desiludida

Por Paulo Rodrigues Pereira* (foto) 

O debate econômico marcou profundamente o último século da política brasileira. Isso se deu de forma tão acentuada que existiram momentos, raros, em que Ministros da Fazenda foram tão importantes, que acabaram emprestando legitimidade ao Presidente da República. No regime militar, quando mesmo os setores mais conservadores começavam a ver abalada sua fé na ditadura, Delfim Neto usava o seu "milagre" para dar uma sobrevida ao governo dos generais. Até Getúlio Vargas buscou acalmar as elites produtivas no seu governo constitucional, dando a chave do tesouro a Horácio Lafer, um príncipe progressista da indústria paulista que prometia uma conciliação entre desenvolvimentismo e liberalismo. Paulo Guedes entrou nessa seleta lista ao ingressar na "Aventura Bolsonaro", descendo do pedestal de uma posição consolidada no mercado financeiro para endossar uma candidatura, no mínimo, curiosa. Justificou sua escolha, prometendo uma revolução.

A sua tese era simples. Com a redemocratização, o Brasil teria parado de crescer pelo aumento do seu custo de produção, cujo principal fator seria justamente a carga tributária. Dobrado, o custo tributário sugaria recursos da sociedade, a impedindo de investir e crescer. A solução era retomar ao patamar fiscal dos anos 80, reduzindo os tributos a algo perto dos 20% do PIB. Ao ser perguntado como faria isso, Guedes costumava subir o tom e acusava seus entrevistadores de serem pouco ousados, atribuindo, talvez aos jornalistas, as máculas da macroeconomia brasileira. A sua promessa, um pouco abstrata, era de redução dos gastos do governo e dos déficits fiscais com reformas, privatizações e liberalizações de setores da economia. Com um custo menor, os tributos poderiam ser gradativamente reduzidos.

A poucas semanas do fim do terceiro ano do governo, não é exagero dizer que a gestão Bolsonaro caminha para seu fim. No próximo ano, todos os recursos intelectuais, políticos e de comunicação serão usados pelo presidente e seus ministros exclusivamente para os assuntos eleitorais. Vale perguntar: qual o tamanho da revolução fiscal de Guedes?

Não é segredo para ninguém que o sistema tributário brasileiro está longe de ser um modelo. Seus problemas não se resumem à parcela que o Fisco arrecada. O sistema brasileiro é profundamente injusto e complexo: dezenas de tributos se acumulam, com regras diferentes, entre os três entes federativos, gerando dúvidas, conflitos e dificuldades graves para o exercício da apuração e do recolhimento destes. Um estudo do Banco Mundial mostrou que o Brasil ostenta a nada confortável posição de ser o 184º país - entre 190 - de uma escala que avalia a facilidade de operar o sistema tributário. A discussão sobre o tamanho da carga tributária nacional é complexa e envolve um interessante debate sobre o tipo de rede governamental que os brasileiros entendem que o Estado deve prover. Não há debate, entretanto, sobre a disfuncionalidade do sistema e a irracionalidade de submeter cidadãos e empresas a uma operação de dezenas de tributos, com regras, documentos e obrigações acessórias distintas. Corre por fora, o fato do Brasil ter um sistema regressivo, onde pobres costumam recolher muito mais do que parcelas mais favorecidas.

No começo do atual governo, existiam ao menos dois projetos que prometiam uma reforma estrutural dos tributos. Como quaisquer projetos dessa natureza, ambas as propostas apresentavam falhas. Entretanto, eram inegáveis seus acertos: concentração de cobranças, com reunião dos tributos sobre consumo; padronização das regras de apuração; criação de um tempo longo de adaptação; maior transparência na aplicação dos regimes de apuração. Muitos poderiam dizer que as ideias eram descoladas de realidades específicas do setor produtivo. Não seria uma crítica injusta. Os seus projetos, ao menos, apresentavam um norte. Poderiam servir como uma espécie de “documento inicial” de um acerto nacional para a construção de uma mudança qualitativa do sistema de tributos no Brasil.

Timoneiro da nau bolsonarista, Guedes resolveu ignorar a existência dos debates que o antecederam, sob a promessa de entregar à sociedade brasileira, uma nova reforma tributária. O ministro nunca foi absolutamente claro, mas é de se imaginar que ele pudesse achar as propostas em curso no Congresso, tímidas demais. Não promoviam a tal revolução liberal que ele prometera aos brasileiros. Completando 36 meses na cadeira mais importante da economia do hemisfério sul, Guedes minou os caminhos que já existiam, desautorizando seus negociadores políticos a trabalharem sobre os textos em análise na Câmara e no Senado, e não apresentou nenhum novo. A tal revolução liberal se resumiu à tentativa de unificação de duas contribuições que já são, na prática, apuradas como uma (PIS e Cofins) e uma mudança pontual no Imposto de Renda. Ambas deram errado. Talvez a sua mais destacada atuação tenha sido o seu apoio velado à volta da CPMF, que acabaria não acontecendo pela falta de coragem do Ministro em defendê-la publicamente.

No final das contas, o governo não foi capaz de articular sua base para aprovar, nas duas casas, tais propostas. Falta de apoio político? Não necessariamente. As últimas semanas mostraram que a máquina de distribuição de benesses do Planalto funciona bem e é bastante apta a realizar os desejos presidenciais. É o caso do malabarismo fiscal que permitiu a criação do Auxílio Brasil - a esperada boia de salvação eleitoreira da gestão. Por que nenhuma mudança fiscal relevante foi aprovada no governo de Jair Bolsonaro? Talvez a radicalidade do discurso de Paulo Guedes não fosse real. Cumpriu o velho papel de vender sonhos a uma elite econômica desiludida e, deve-se dizer, um pouco inocente. Talvez seu propósito tenha se encerrado logo ali, em outubro de 2018.

O Brasil se prepara para mais uma eleição e o balanço dos projetos em discussão aparecerá na pauta dos debates nacionais. Há algo a comemorar na pauta fiscal desta gestão? É possível que sim. Os amigos de Jair Renan devem ter ficado felizes com a redução do IPI para os videogames importados. No site do governo brasileiro, uma matéria de agosto valoriza a redução. Aliás, as reduções. Diz o texto, orgulhoso, que o governo baixou o IPI sobre os jogos eletrônicos pela terceira vez.

*Paulo Henrique Rodrigues Pereira é Sócio da LACLAW. Foi visiting fellow do Department of History (Harvard University) e do Afro Latin-American Research Institute (Hutchins Center, Universidade de Harvard) para o ano de 2020/2021. É doutorando em Direito pela USP.

Valor Econômico

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