Os cinco anos que Flaubert passou escrevendo ‘Madame Bovary’ foram os mais ricos e criativos.
Por Mario Vargas Llosa (foto)
Em algum momento do século passado, cheguei a Paris e no mesmo dia comprei um exemplar de Madame Bovary numa livraria do Quartier Latin chamada Joie de lire. Depois de passar a maior parte da noite lendo, ao amanhecer já sabia o tipo de escritor que queria ser e, graças a Flaubert, estava começando a aprender todos os segredos da arte do romance.
Ninguém deu maior ímpeto ao gênero romance que o solitário de Croisset. Ele descobriu que o narrador era o personagem mais importante que o romancista podia criar, e que este poderia ser um narrador impessoal que sabia de tudo - uma imitação de Deus Pai - ou um contador personagem, e que estes podiam ser vários e diversos. Desse modo, Flaubert criou o romance moderno e lançou as bases daquilo que, anos depois, seriam os infinitos arranjos e figuras inventadas por James Joyce para dotar o romance e diferenciá-lo do passado, dos clássicos. Mas o romancista que melhor aproveitou as invenções de Joyce, o irlandês, não foi um europeu, mas sim um americano perdido na região do Mississippi, em cujas mãos o gênero ficcional alcançou uma flexibilidade no tempo e no espaço que permitiu todos os excessos: William Faulkner. O mais extraordinário de Faulkner, no entanto, não foi a fantástica audácia que lhe permitiu escrever romances como Enquanto Agonizo e O Som e a Fúria, as mais difíceis da criação do gênero, mas sim os enganos dos jornalistas a quem se apresentava “como um fazendeiro que amava cavalos” e se recusava a falar sobre as técnicas do romance porque, segundo ele, “nada sabia sobre essas coisas”. Graças a Flaubert, Joyce e Faulkner, o romance moderno seria uma realidade nova e singularmente diferente do romance clássico.
No caso de Flaubert, a preocupação com a estrutura do romance vinha nas cartas que escrevia todas as noites para sua amante, Louise Colet, durante grande parte dos cinco anos que levou para escrever Madame Bovary. Passaram-se muitos anos antes que essas cartas pudessem ser reunidas em livro, talvez o mais importante que jamais foi escrito, colocando os limites do romance moderno como uma forma perfeitamente estabelecida e distinta de tudo o que até então se havia feito em algumas histórias que teriam o nome de “romance”. A ruptura com o passado foi flagrante, mas misteriosa. Consistiu em explicar que o ordenador de uma história podia ser a imitação de “Deus Pai” que tudo sabe de tudo, ou uma simples personagem que não pode saber mais do que aquilo que os seres comuns sabem dos outros, com a falibilidade implícita nesse conhecimento. Dentro de um romance, como em Madame Bovary, pode haver um narrador “Deus Pai” e vários narradores personagens, desde que respeitados os limites de cada um.
No plano da prosa, Flaubert sempre acreditou que a excelência da frase dependia de sua música e que bastava uma sílaba desafinada para que se perdesse aquela perfeição musical - a que Flaubert atribuía virtudes encantatórias. Os cinco anos que passou escrevendo Madame Bovary foram os mais ricos e criativos do ponto de vista da estrutura do romance. Verdade seja dita: o verdadeiro criador do romance moderno foi Flaubert.
A história de Emma Bovary e as cartas quase diárias para Louise Colet foram a fundação do romance moderno, ainda que esse fato tenha levado algum tempo para se revelar. O narrador invisível é a criação mais importante de Flaubert: aí está aquele que sabe tudo sobre a história que conta, mas que não é uma presença. É uma ausência que sabe tudo o que acontece, mas não se mostra. Bem ao contrário, esconde a sua presença fingindo impessoalidade, sempre interrompido pelas demais personagens da história, que podem mostrar e sentir uma presença e uma existência limitadas, desde que não ultrapassem o que uma pessoa deve e pode saber.
O ângulo de foco é sempre a obra do narrador “Deus”, que distribui as aparições e reaparições das personagens de acordo com as diferentes flutuações da história. Nesse esquema, pode-se conhecer e contar tudo, até mesmo os sábios silêncios que o narrador impõe à narrativa.
O “novo romance” que Flaubert inventou em Madame Bovary permite tudo, dentro de certos limites. Por exemplo, criar uma personagem coletiva e momentânea, como aquela sala em que o novo aluno irrompe no início do romance, quando a professora apresenta Charles Bovary. Esse auditório é uma personagem só, que se dividirá em diferentes seres à medida que os alunos recuperarem sua personalidade e começarem a se diferenciar uns dos outros.
No esquema criado por Flaubert, tudo é possível e coerente, desde que o romancista respeite as regras e não se distraia, para que não ocorra um acidente que desmorone a arquitetura rigorosa do romance.
Não foi facilmente que Flaubert se tornou aquele que podia passar cinco anos de vida escrevendo da manhã à noite, sete dias por semana, Madame Bovary. Antes teve de inventar uma enfermidade que convencesse seu pai, o Doutor, que, é claro, queria que o filho Gustave seguisse sua carreira. Críticos e médicos vêm discutindo bastante sobre a famosa doença de Gustave Flaubert, aquelas crises que o atingiam e o derrubavam ao chão, vendo luzes estranhas. Acredito que essa enfermidade ele a inventou para poder trabalhar em paz, dedicando todo o seu tempo à escrita - o que não significava em absoluto que ele às vezes não caísse no chão e visse luzes estranhas e tivesse vômitos e tudo mais. Ainda bem que suas cartas para Louise Colet foram preservadas. Ela as guardou, bendita seja sua memória. Mas as cartas de Louise Colet a Flaubert, porque seriam muito pornográficas, foram queimadas por uma sobrinha infame, que assim ganhou todo o ódio dos flaubertianos (também o meu, é claro).
Flaubert sabia da revolução que iria desencadear com Madame Bovary? Não dá para saber. Ele acreditava, ao longo daqueles cinco anos, que estava trabalhando em Madame Bovary e provavelmente não estava ciente da extraordinária difusão que teria sua descoberta, nem da revolução que provocaria o narrador invisível e total, que abriria uma cisão entre o romance novo e o antigo, isto é, o clássico. Não é a primeira vez na história da literatura que alguém, como que por acaso, descobre um novo sistema narrativo e gera uma revolução (por exemplo, Borges em seus contos).
Sempre tive admiração e carinho por Flaubert, como a um tio ou avô. Fui a Croisset não sei quantas vezes para reviver seus passeios gritando na “alameda da gritaria”, onde ele ia testar a perfeição de suas frases rítmicas. Também lhe levei flores não sei quantas vezes naquele cemitério cheio de sepulturas e de cruzes e visitei o hospital de seu pai, o médico que o obrigou a sustentá-lo enquanto ele escrevia aquele romance-rio.
Ele tem hoje duzentos anos e a forma de escrever romances que inventou está sempre viva e jovem. Tenho a sensação de que, nos duzentos anos que virão, sua maneira de escrever seguirá operando em sua eterna juventude.
O Estado de São Paulo