Saneamento, novo marco das ferrovias, fim de era no pré-sal
Por Daniel Rittner (foto)
Retrospectivas costumam ser compilações de personagens, episódios, frases marcantes de um ano. Sem delongas, eis três tendências econômicas com origem em fatos ocorridos em 2021, mas que não se encerram com a virada de calendário e terão desdobramentos relevantes ao longo do restante de década.
1) Saneamento: tornou-se a estrela dos leilões de infraestrutura, com estreantes no mercado e investidores estrangeiros capitalizando empresas já bem posicionadas. Questionamentos sobre a viabilidade do modelo envelheceram rapidamente. O Supremo Tribunal Federal (STF) afastou incertezas jurídicas.
O leilão de três blocos da Cedae (RJ), em abril, foi o pontapé inicial da transformação. Um bloco remanescente está sendo licitado hoje e recebeu pelo menos duas propostas Houve certames bem- sucedidos no Espírito Santo e na região metropolitana de Maceió.
Lembra a história de que as empresas privadas iam querer só o filé e deixar para trás o osso? Basta uma estruturação correta dos projetos para viabilizar a chegada dos serviços em áreas mais carentes. Mesmo com baixa densidade populacional, o Amapá atraiu R$ 3 bilhões em investimentos e quase R$ 2 bilhões em outorgas, trazendo para o saneamento a Equatorial, bastante conhecida no setor elétrico. Quando alguém disser que municípios menores serão esquecidos, convirá resgatar o caso de Alagoas. Dois blocos - um no agreste e no sertão, outro na zona da mata e no litoral - foram arrematados com êxito.
É apenas a primeira de três ondas de investimentos. A segunda deve chegar no pós- 2022, quando termina o prazo dado às estatais de água e esgoto para comprovarem capacidade econômica para universalizar os serviços. Quem não conseguir perde os contratos e abrem-se concorrências. Companhias estaduais no Pará, Piauí, em Rondônia e Santa Catarina correm risco. A terceira onda virá em 2027/2028, quando empresas que passaram pelo primeiro sarrafo precisarão demonstrar cumprimento das metas de qualidade estipuladas. Se não, devem ter concessões cassadas.
Na infraestrutura, boas oportunidades de negócios para investidores privados são sempre bem-vindas. Mas nunca se deve perder o foco do principal: melhorar serviços, de forma palpável, para a população. Há razões para acreditar numa baía de Guanabara limpa - assim como na recuperação de muitos rios fétidos que cruzam capitais - até o início da próxima década.
2) Ferrovias: a modernização e a ampliação da malha nacional, irrisória para o tamanho do país, estavam calcadas em dois pilares. Um era o investimento público (Norte-Sul e Fiol), com repasse à iniciativa privada na reta final de execução. Não há mais espaço para isso. Outro é a prorrogação antecipada de concessões perto de vencer, em troca de exigências bilionárias, o que viabiliza obras como a duplicação de trechos da Malha Paulista e a construção da Fico (entre Goiás e Mato Grosso).
São avanços que derivam de um planejamento iniciado em 2015. Infraestrutura é assim mesmo: dá mais certo quando as estratégias privilegiam o longo prazo, viram política de Estado, e não de governo, sem uma guinada a cada quatro anos. No entanto, a janela de grandes investimentos aberta com as renovações antecipadas se fechará depois de algum tempo.
A Lei 14.273, sancionada no dia 23 de dezembro, é o “game changer”. O projeto original foi apresentado em 2018 e precisou de uma legislatura quase inteira, além do empurrão dado por medida provisória de teor semelhante, para andar. A partir de agora, ferrovias poderão ser construídas pelo regime de autorização, com mais liberdade regulatória e sem a necessidade dos exaustivos trâmites de um leilão organizado pelo governo.
Em menos de quatro meses, desde a publicação da MP, foram apresentados 64 requerimentos de novas ferrovias. O Ministério da Infraestrutura anunciou que haverá cerca de R$ 180 bilhões em investimentos privados. Essa estimativa é irrelevante. Serve aos propósitos de inflar divulgações oficiais, mas muitos pedidos do setor privado são excludentes entre si ou têm viabilidade para lá de contestável. Devem virar ferrovias de papel. Não importa. Se um terço disso for adiante, excluindo tudo o que não tiver pé nem cabeça, será suficiente para termos o maior chacoalhão em décadas na logística brasileira.
3) Pré-sal: a era dos bônus de assinatura bilionários em leilões do petróleo pode ter terminado com a venda de Sépia e Atapu, os dois últimos blocos dos volumes excedentes da cessão onerosa, na bacia de Santos. Eles vão render R$ 11,1 bilhões na assinatura dos contratos. São áreas já em fase de produção e com reservas fartas, com uma alta produtividade dos poços, o que reduz a emissão de carbono por barril. Isso explica o interesse de grandes petroleiras, como Total e Shell, pela exploração na costa brasileira.
De agora em diante, o quadro fica mais desafiador. O estoque de áreas nobres no pré-sal chega perto do fim. Em vez de rodadas convencionais, daqui para frente o governo pretende ter uma “oferta permanente”, espécie de cardápio com ativos disponíveis continuamente às petroleiras que manifestarem interesse.
O que poderia converter-se em novas fronteiras exploratórias, na margem equatorial, esbarra em sensibilidades ambientais. A 17ª rodada de licitações de blocos pelo regime de concessão teve o menor número de participantes e áreas arrematadas nas disputas do gênero até hoje. Empresas preferiram manter distância de arquipélagos como Fernando de Noronha e Atol das Rocas. A foz do rio Amazonas, onde muitos veem potencial de descobertas semelhantes às que prometem mudar a cara da vizinha Guiana, deverá permanecer intocado.
O pré-sal já representa 70% da produção. Saem de cena os leilões pomposos, entra a fase mais aguda de exploração. Os cofres da União serão recheados com fortunas em participações governamentais. Sépia e Atapu, por exemplo, vão gerar R$ 300 bilhões ao longo de sua vida útil em royalties, impostos e barris pertencentes à estatal PPSA.
A mudança de tempos, porém, coloca em evidência o futuro da Petrobras. Ela deveria mesmo concentrar seus investimentos e capital humano em sugar o pré- sal até a última gota, enquanto o petróleo continua sendo a maior commodity do planeta, ou seria o caso de acelerar sua transição energética e preparar-se para a economia verde? Como poderá valer mais daqui a 20 ou 30 anos? Teria que agir como indutora do desenvolvimento em setores supostamente estratégicos ou isso significaria uma armadilha para monopólios e corrupção?
Valor Econômico