Podemos não concordar com tudo, mas há de se convir que Foucault tem intuições pertinentes para compreender a conduta de cidadãos comuns na pandemia.
Por Bruna Frascolla (foto)
Feitas as cerimônias, vamos então a umas pinceladas acerca d’ A História da Loucura, de Foucault, publicada em 1961. O mesmo sujeito que viria a se entusiasmar com uma ditadura teocrática (a iraniana) perto de morrer tinha, em 1961, uma visão bastante otimista da Idade Média ocidental. Sua linha temporal começa com ela e vai até o século XIX, descrevendo uma espécie de declínio na compaixão humana.
Ele não formula expressamente nenhum juízo de valor, nem descreve o arco temporal nesses termos, mas a narrativa de queda é evidente. A História dele tem início na Idade Média, continua no que ele chama de Idade Clássica (que é a Modernidade) e termina no século XIX, que mais tarde ele chamaria de “vitoriano” e os foucaultianos usam como xingamento.
Nos leprosários, os desafortunados
A História da Loucura começa na Idade Média por causa dos leprosários, instituição que vai sofrendo uma série de metamorfoses até se transformar nos asilos de loucos.
A lepra chegou à Europa com a rota da seda, vinda do Oriente. Com a tomada de Constantinopla pelos muçulmanos, foi-se pro espaço a rota, e quase toda a Europa, excetuada a Península Ibérica, ficou de fora do comércio. O efeito colateral positivo disso foi o fim da lepra na maior parte da Europa.
A lepra é uma doença contagiosa e incurável. A cristandade poderia, se não tivesse nenhum respeito pela vida humana, exterminar os leprosos para salvaguardar a coletividade. Em vez disso, construía instituições chamadas leprosários para receber os doentes e assisti-los com dignidade até o fim de suas vidas.
É comum a humanidade moralizar fenômenos naturais, enxergando neles castigos ou bênçãos divinas. Assim, a lepra até era enviada por Deus — mas era um mal imposto à humanidade de maneira indistinta. Se João se tornou um leproso, não é culpa pessoal dele, e a sociedade deve ser mobilizar para ampará-lo. Na Idade Média a Cristandade era levada a enxergar no leproso, no pedinte, no mendigo, a imagem de Jesus, do Deus feito homem. Existia uma crença popular segundo a qual Jesus vinha à terra na forma do pobre e desamparado para testar o cristão. Sob o Rei Sol, na modernidade, o clero baixará decretos burocráticos comunicando ao povo que Jesus não vem mais à terra mendigar, porque o Rei já providenciara asilos para os mendigos.
Temos então, segundo Foucault, uma burocracia racionalista que dessacraliza a figura do miserável e condena a compaixão por ele. Da Idade Média para a modernidade, há uma mudança na forma de olhar para o desafortunado.
Por que a burocracia nascente tomou conta da caridade? Segundo Foucault, porque o fim da lepra deixou ociosas as estruturas dos leprosários, que gozavam de gordas doações. O Estado se apropria dessa máquina e, ao mesmo tempo, incentiva uma nova ética baseada no trabalho, incapaz de reconhecer o divino no improdutivo. (Diferentemente dos foucaultianos, Foucault estava muito mais próximo do anarquismo do que do estatismo.)
A verdade na voz do louco
Outra figura inútil é o louco. Na Idade Média, os loucos erravam de cidade em cidade. Assim como ainda hoje, de São Paulo pra baixo, há o hábito de botar mendigos em ônibus e despachar para outros municípios, na Europa medieval havia o hábito de entregar os loucos aos marinheiros, que deveriam botá-los nos navios e despachá-los em cidades desconhecidas. Lá, eram novamente entregues a marinheiros que estavam incumbidos de despachá-los noutras cidades. Loucura e errância estavam atreladas, e a imagem da nau dos loucos representa isto.
Até a Renascença a loucura desempenhava um papel alegórico positivo (veja-se o Elogio à Loucura de Erasmo); a figura do bobo da corte dizia verdades que ninguém com juízo são tinha liberdade para enunciar. Entendia-se que o desatino e a loucura faziam parte da vida comum; não havia a pretensão de alguém ser inteiramente racional. A loucura momentânea, o transe extático, eram valorizados em experiências religiosas.
Com a Idade Clássica, a mentalidade muda. Foucault fala num mundo barroco cheio de estrelas a guiar a mentalidade mais antiga. Contraposta a esta, há uma mentalidade platônica, em que há somente o Sol da verdade e da razão em oposição ao Não-Ser. A loucura passa a ser reduzida a um Não-Ser; a normalidade torna-se a racionalidade.
Foucault seria mais claro se falasse abertamente em platonismo. Tanto Platão quanto Descartes veem um mundo em que o Sol representa o Ser, o Belo, o Bom e a Verdade, de modo que o erro, o mau, o feio são Não-Ser. Essa nova cosmovisão rouba à loucura e ao desatino o seu lugar no mundo. Pari passu, os leprosários vazios começam a se encher de loucos, doentes e mendigos.
Dessa mudança cultural na cosmovisão, não de um avanço no conhecimento, surgem os asilos. Aí entram não só os doidos que atiram pedras nos outros, mas também os familiares indesejáveis que faziam coisas irracionais, tais como beber demais, arranjar amantes, dispersar a fortuna da família. Ou bem se está no campo da Razão e do Ser, ou no da Loucura e do Não-Ser. E o asilo se torna o local para despejar todos aqueles que estão nas trevas, afastados daquele grande Sol platônico. Por isso não é de admirar que loucos e criminosos tenham passado tanto tempo misturados.
Nessa mistura, começa a haver a imputação de culpa individual aos loucos. A caridade deixara de ser obrigação religiosa. Agora, o asilo era espaço de punição – coisa infinitamente diferente dos leprosários medievais, aos quais os cristãos faziam caridade esperando recompensas na outra vida.
Experiência do internamento
A medicina hipocrática já tratava dos problemas humorais que repercutem na alma. A despeito desse movimento de depositar loucos nas masmorras, havia médicos tentando curar a loucura. Isso é um movimento que vai na contramão da imputação de culpa; afinal, se alguém era privado de razão em função de um problema de saúde, era ao mesmo tempo desculpado por isso.
Ainda no século XVIII, os médicos não separavam o corpo da alma tão bem. Era como se o homem fosse uma espécie de chaleira ou de conserva, cheio de vapores e fermentações. Foucault não fala, mas isso vem desde a Antiguidade, quando se achava que os habitantes de Atenas eram mais inteligentes por causa do ar fino que respiravam, ou que os de Abdera eram burros por causa do ar grosso. No século XVIII Malebranche está bem na moda, e ele (que aparece em citações de Foucault) de fato retomava essas crenças antigas nas influências de ar e líquidos sobre a saúde da alma.
Munidos dessas crenças, os médicos começaram a tentar curar a alma dos loucos a partir de procedimentos físicos. Um exemplo que Foucault dá é o da centrifugação: se o médico acha que o louco está com um problema nos humores (entendidos como líquidos), irá amarrá-lo e rodá-lo bem rápido, várias vezes, para centrifugá-los. Por melhores que fossem as intenções, os tratamentos poderiam ser verdadeiras torturas. Num período contínuo, os médicos centrifugavam os loucos. A intenção, porém, foi mudando: primeiro centrifugava-se por uma questão orgânica, corporal; em seguida centrifugava-se por uma questão moral. Primeiro não havia a noção de castigo. Depois ela apareceu e se confundiu com a cura. E este seria o pé em que estamos até hoje: moralizando os males num plano individual, considerando que o castigo faz parte da cura.
Eu pelo menos acho isso bastante explicativo no que concerne à obediência de ordens irracionais dadas durante a pandemia. A confusão entre cura, punição e moralização é bastante visível nas medidas que visam a atrapalhar a vida de quem não tomou a vacina. A vacina é uma medida moral, muito além da alçada científica. Por mais que o leitor creia (como eu creio) haver muito dinheiro da indústria farmacêutica para explicar a conduta dos governo, o dinheiro não explica a aceitação por pessoas desinteressadas. Isso, ao meu ver, só um estudo culturalista, ao estilo de Foucault, resolve.
Nova concepção do homem
Assim, para Foucault, a experiência dos asilos terminou por refletir uma nova concepção do homem. Com o tempo, sem nenhuma premeditação consciente, os médicos foram percebendo que, embora ineficazes como métodos de cura corporal, essas torturas serviam como método de coação. Essa coação era entendida como início da cura. Ao mesmo tempo, os próprios médicos passaram a considerar desumano colocar os presos sãos junto com os insanos – mas não por causa dos criminosos, e sim por causa dos loucos. Se no começo desse processo cultural era uma injustiça colocar inocentes junto com culpados por causa dos culpados, no fim era uma injustiça colocar sãos com loucos por causa dos loucos.
Para Foucault, há uma nova e contraditória visão do que seja o homem. Em vez de haver pura e simples razão e insanidade, o Ser e o Não-Ser, passa-se desse dualismo a uma tríade: o homem está entre a loucura e a verdade. Tanto a verdade quanto a loucura são objetos externos ao homem, que pode pairar entre uma e outra. Como os loucos são considerados ao mesmo tempo culpados (já que a moralização da doença mental incide sobre os indivíduos) e incapazes de culpa (porque estão privados razão), eles são privados de liberdade. A liberdade consiste, então, num uso muito determinado de sua razão conforme certos preceitos morais que se confundem com médicos. Se uma dada pessoa não quer se conformar a eles, então é louca e merece perder a sua liberdade.
No mesmo passo, o são precisa do contraste do louco para se sentir possuidor da verdade e da razão. Por fim, o asilo, com sua discriminação entre loucos e sãos, se torna instituição central na moral da sociedade.
Podemos não concordar com tudo, mas há de se convir que Foucault tem intuições pertinentes para compreender a conduta de cidadãos comuns na pandemia.
Gazeta do Povo (PR)