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quarta-feira, dezembro 29, 2021

Matou o Orçamento e foi às férias




Por Carlos Andreazza (foto)

Pouco haverá de mais constrangedor do que o ministro da Economia plantando que trabalhou e trabalha ainda por resistir, mui inconformado, ao assalto patrimonialista contra o Orçamento; isso enquanto todas as suas gestões de defesa fiscalista — se fossem reais — fracassam, e ele, mui contrariado, reage evadindo-se em férias.

Talvez seja uma modalidade liberal de protesto. Mata o Orçamento e vai às férias. Passeio que antecedeu a carga de outras corporações por aumento salarial a partir da concessão de reajuste, negociada por Paulo Guedes, a policiais federais, policiais rodoviários federais etc. Mas ele, aborrecido, viajou. Loteou o Orçamento — operador na partilha — e foi esfriar a cabeça.

Lembremos essa parte do teatro — mais um ato em que o bode aboletou-se na sala. Bolsonaro, nalguma ditadura árabe, prometendo aumento a todo o funcionalismo federal. Então a sociedade, sacrificada sob a peste, protestou, Guedes difundindo seus incômodos — e logo o presidente a recuar, tirando o bicho do cômodo, para chegar ao lugar pretendido. Reajuste apenas para as categorias que compõem a base social bolsonarista.

Já a PEC Emergencial, com seu rigor fiscalista só sobre o futuro, para efeito, com sorte, em 2024, criava as condição para esses aumentos corporativistas. Avisamos. Aí está. Guedes sempre reclama. Sempre entrega. No caso desse grupo de reajustes, não somente negociou na ponta agora, como pavimentara, no primeiro semestre, as condições fiscais a que os gastos eleitoreiros fossem possíveis no ano eleitoral.

Mas ele, chateado, foi em férias.

E voltará! Colaborou para o rapto do Orçamento e foi descansar. Espanta que continue no cargo, tantos os seus tombos. Não espanta. Espantaria, fosse isso verdadeiro. Não há tombos. Há dissimulações. Guedes — um Pedro Guimarães que não faz flexões — esteve fechado com a confecção de um Orçamento corrompido em impulsos para a competitividade de Bolsonaro e seus sócios em 2022.

Não faz flexões, mas nunca houve espinha liberal mais flexível. Enquanto ele celebra o salto da arrecadação federal derivado do imposto inflacionário, ressalto a verdadeira obra-prima do ministro da Economia: o tripé do esculacho fiscal, advento da PEC dos Precatórios. A coluna disto que se votou como Orçamento. Gancho para a prática do orçamento secreto, conforme formalizado — com a chancela do Supremo — por Rodrigo Pacheco.

O tripé do esculacho fiscal, segundo esculpido por Guedes: constitucionalização da pedalada em precatório; implantação de bases cegas para cálculo do teto de gastos; e estabelecimento de gasto permanente sem a necessidade de fonte compensatória.

Nunca foi pela expansão do Bolsa Família. Guedes fulminou o Orçamento e foi à praia. (Caribe?) Sem a PEC dos Precatórios, disse, não haveria dinheiros para pagar salários e comprar vacinas. Aí está a PEC, desbastando o terreno não para assegurar o pagamento da folha — mas para custear aumentos salariais a algumas categorias e ainda a expansão do fundão eleitoral.

Outro teatro asqueroso, o do fundo eleitoral. O veto-mentirinha de Bolsonaro aos R$ 5,7 bilhões aprovados na LDO, enquanto o Planalto operava pela derrubada do veto — condição para que se armasse, no atropelo, a gambiarra do valor intermediário na LOA: R$ 4,9 bilhões. Tudo forjado em benefício, afinal, de um presidente que, nesse ínterim, filiar-se-ia ao PL, grande cotista desses dinheiros bancadores de campanha.

Orçamento é produto de escolhas. O de 2022, composto em meio a uma pandemia, dedica-se radicalmente a dois projetos patrimonialistas: o eleitoral e o corporativista. Se prevê o menor volume de investimentos da História, privilegia os ministérios da Defesa e do Desenvolvimento Regional, em cuja Codevasf desenrola-se o orçamento secreto. Peça orçamentária que é produto de uma sociedade, entre governo e Congresso, que manteve a fila para recepcionar os pobres no Auxílio Brasil, ao mesmo tempo que garantiu mais de R$ 16 bilhões às emendas do relator.

A deterioração, em resumo: a ideia republicana de o Orçamento ser administrado pelo Parlamento de todo assaltada pela perversão personalista contida na prática de bilhões de reais serem geridos pelas paróquias de pachecos, liras e ciros. O Orçamento transformado, sob a radicalização da discricionariedade, em banco privado para financiar as agendas de meia dúzia.

Antes fosse a mera incompatibilidade entre sistema presidencialista e Orçamento progressivamente parlamentarista. Precisaria haver República. O que temos é, na corrupção do Orçamento, um ataque à própria democracia representativa, de súbito com categorias de deputados e senadores medidas em quanto cada um consegue para suas cidades graças a um alcolumbre desses; potenciais 594 orçamentos paralelos.

O Globo

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