O uso da Justiça para censurar a imprensa é a cada dia mais preocupante. E não só no Brasil. O GLOBO, entre outros veículos, foi alvo recente de duas decisões judiciais impedindo a publicação de reportagens. No Brasil, tais decisões costumam cair nas instâncias superiores, em virtude da proibição constitucional expressa à censura; mesmo assim são usadas em tentativas de intimidar a atividade jornalística. O mesmo expediente começa a ser aplicado até em países em que a liberdade de imprensa é um valor consolidado, como os Estados Unidos.
Na véspera do Natal, o New York Times foi surpreendido pela decisão de um juiz que não apenas o proíbe de publicar documentos, mas também o obriga a destruí-los. Trata-se de ordem inédita no sistema judicial americano, onde a liberdade de imprensa é protegida de modo quase absoluto pela Primeira Emenda à Constituição. “A Primeira Emenda não tolera a ideia de que o discurso possa ser censurado antecipadamente, mesmo que possa ser punido depois [da publicação]”, escreveram Stephen Adler e Bruce Brown, do Comitê de Repórteres pela Liberdade de Imprensa, no Washington Post, principal concorrente do Times.
No célebre caso dos Documentos do Pentágono, de 1971, a Suprema Corte vetou a censura prévia estabelecendo critérios praticamente intransponíveis para autorizá-la. A exceção é admissível apenas em situações que ponham em risco iminente a segurança nacional, como divulgar movimentos de tropas durante uma guerra. Não se trata, obviamente, do caso em que o juiz de Nova York Charles Wood impediu o Times de publicar documentos da organização conservadora Project Veritas.
A Project Veritas se autoproclama uma iniciativa jornalística, mas é investigada pela suspeita de ter furtado diários da filha do presidente Joe Biden, pela tentativa de grampear policiais do FBI e por usar aplicativos de paquera para se aproximar de funcionários do governo. Em 2020, o Times noticiou seu envolvimento numa campanha de desinformação que alegava fraudes em massa no estado de Minnesota nas eleições de 2018. A Project Veritas processou o jornal por difamação.
Os repórteres do Times obtiveram documentos, anteriores a esse processo, em que os advogados da organização transmitiam recomendações sobre práticas que poderiam violar a lei, como uso de identidades falsas ou câmeras ocultas. São esses os documentos que Woods impediu o Times de publicar, sob a alegação de que isso violaria a comunicação privada entre advogados e clientes num processo em que o jornal é parte interessada.
A decisão abre um precedente absurdo, pois permitiria a qualquer atingido por uma reportagem que processasse os autores, depois incluísse as informações incômodas no processo e alegasse que são dados sigilosos. Que esse tipo de manobra sem cabimento prospere num país em que a liberdade de expressão é tida como direito sagrado só demonstra quanto ela precisa ser protegida com diligência no mundo todo.
O Globo