Escrito por Gabriel Brito
29-Abr-2009
No bojo da atual crise financeira, que escancara diversas outras de nossa contemporaneidade, uma das grandes discussões que se travam é a respeito do futuro da esquerda e seus rumos sob o novo contexto global. E um dos pontos mais geradores de controvérsias tange sobre até que altura deve-se praticar as lutas populares pelas vias institucionais vigentes, diminuindo esforços nos outros caminhos.
Com vistas a tratar sobre esse possível viés eleitoreiro, o Correio da Cidadania conversou com o deputado federal do P-Sol Chico Alencar (RJ), cujo partido tomou as rédeas da defesa pública do delegado Protógenes Queiroz, sistematicamente perseguido, por imprensa e instituições oficiais, após sua atuação na famosa Operação Satiagraha. Tal processo se deu após desvendar crimes do colarinho branco, em especial do banqueiro Daniel Dantas, cujos tentáculos de poder não foram inteiramente descobertos até hoje. Depois de algumas aparições do delegado com importantes quadros da legenda, surgiu a conversa sobre a possibilidade de filiação de Protógenes ao P-Sol, já defendida até por alguns de seus dirigentes.
Para o deputado, tais fatos não configuram um flerte entre ambas as partes, com vistas eleitoreiras, mas a defesa do delegado se fez necessária diante da inversão de valores perpetrada, com investigador virando investigado. Chico diz que após a experiência do PT, os membros do partido já estão ‘vacinados’ e que o futuro político de Protógenes pertence somente a ele, mas se quiser discutir filiação e candidatura com o partido, será ouvido.
De toda forma, o deputado acredita ser ‘precária’ a atual organização da esquerda, ainda não recuperada dos atrasos programáticos do século XX. Mesmo assim, acredita que algumas alternativas já estão colocadas, o que seria perfeitamente complementado com um maior envolvimento das massas e da juventude, ainda incipiente.
Correio da Cidadania: No aparentemente sempre atual estado de descrédito de nosso Congresso, com novos escândalos e conflitos de interesses em nossas instâncias mais altas, a esquerda deveria tentar se aproveitar de que forma do momento, em que direção deve canalizar seus esforços?
Chico Alencar: Em primeiro lugar, relembramos que a política, no seu sentido maior, é a realização ética da virtude do bem comum. E que no sistema capitalista a corrupção da política é crônica porque perdeu-se justamente esse objetivo do interesse público, das maiorias.
Os escândalos que pontuam o noticiário são a expressão conjuntural, imediata, da corrupção sistêmica. Muitos "representantes do povo" encaram seus mandatos como meio de poder, prestígio e... dinheiro. Mas a esquerda não pode, com isso, considerar que os espaços institucionais estão definitivamente contaminados e são prisioneiros do capital. É preciso travar a disputa ali também, cobrando e praticando austeridade e transparência.
Nossa tarefa é sempre de separação para o discernimento: separação entre o público e o privado, separação entre o essencial e o acessório. Muitos setores da imprensa destacam os desmandos do parlamento, com o sensacionalismo que "castelos" e "vôos de beldades" estimulam, a fim de esconder a crise, o escândalo da demissão de trabalhadores, a evasão de divisas, a sangria da dívida, o conglomerado empreiteiras/bancos/fundos de pensão que financiaram dois terços do Congresso, os continuados benefícios para o agronegócio...
Nosso dever é também alertar sempre para esses desvios de foco, não embarcando na ilusão de "cruzadas moralóides", e sim forçando, coletivamente, através de regramentos gerais e públicos, a transformação dos arraigados costumes patrimonialistas. A esquerda, sem perder o horizonte socialista, precisa, no aqui e agora, ser republicana.
CC: Neste contexto, como situa o flerte entre parte do P-Sol e o delegado Protógenes Queiroz, que poderia até passar a fazer parte dos quadros do partido?
CA: O PSOL não "flerta" com o delegado Protógenes. Apenas o apoiou, por convicção, quando, em função dos imensos poderes de Daniel Dantas e seus sócios, ele começou a ser esvaziado. Protógenes é um servidor público, um cidadão comum, falível, mas com especialização profissional em desvendamento de crimes financeiros, do colarinho branco. Já atuava nisso há uma década, mas só ficou conhecido quando começou a pegar peixes graúdos, a incomodar a elite. E foi inequivocamente pressionado, como o juiz De Sanctis e até o procurador da República De Grandis.
Houve uma inversão de valores, quem investigava passou a ser investigado. Menos mal que o banqueiro Dantas, já condenado por corrupção ativa, agora está também indiciado por gestão fraudulenta, formação de quadrilha, evasão de divisas, sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e empréstimo vedado.
O futuro político de Protógenes pertence a ele, nada fizemos com cálculo eleitoral. Se ele quiser discutir com o partido sua filiação e, no futuro, uma candidatura, será acolhido. Mas nada é automático nem há qualquer compromisso das partes quanto a isso.
CC: Corre-se o risco de a legenda entrar por um caminho eleitoreiro, e começar a esquecer seu princípio programático centrado no socialismo, de forma similar à que já vimos com outras anteriormente?
CA: Estamos vacinados. Muitos de nós viemos do PT e estamos atentos às seduções do conformismo e do alpinismo do poder. É preciso uma autocrítica permanente, tradição esquecida da esquerda.
Temos que buscar mais enraizamento social, que ainda é pequeno, e combinar sempre a atuação parlamentar com a interlocução com os movimentos sociais. A retomada do trabalho de base também é essencial.
CC: Acredita que a esquerda está se organizando e mobilizando da forma mais correta neste momento de crise mundial?
CA: A reorganização da esquerda mundial ainda é insuficiente e precária. A nova crise capitalista não re-significa, por si mesma, o ideário socialista, tão desgastado pelas práticas burocráticas, autoritárias e centralizadas no século XX.
É preciso combinar mobilização contra a crise, que não é só econômico-financeira, mas sanitária, ambiental e até de valores civilizatórios, com elaboração teórica para enfrentar a complexidade do momento.
O Fórum Social Mundial de Belém apontou alguns caminhos de rearticulação, a partir de uma proposta comum de combate à crise, fundada na garantia do trabalho, na mudança do padrão energético e do modelo econômico, na participação política direta, na sustentabilidade ambiental de todas as políticas públicas, no trânsito do capital financeiro para os investimentos produtivos alternativos, no fim dos paraísos fiscais e da farra especulativa.
Mas tudo isso só avançará se o povo, os trabalhadores e a juventude se puserem em movimento.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
Fonte: Correio da Cidadania
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