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terça-feira, maio 29, 2007

"Não há nenhum pensamento importante que a burrice não saiba usar, ela é móvel para todos os lados e pode vestir todos os trajes da verdade. A verdade

Por:
Reinaldo Azevedo


Reinaldão, um feminista, Renan e o que diria Cícero
Ai, ai... Por Pachamama!E ainda dizem que Bento 16 é muito exigente, não é? Seguisse o presidente do Senado os Dez Mandamentos da Lei de Deus, não estaria agora em apuros. Para quem não se lembra do Catecismo, lá vão de forma resumida:1. Amar a Deus sobre todas as coisas.2. Não tomar Seu santo nome em vão.3. Guardar domingos e festas.4. Honrar pai e mãe.5. Não matar.6. Não pecar contra a castidade.7. Não furtar.8. Não levantar falso testemunho.9. Não desejar a mulher do próximo.10. Não cobiçar as coisas alheiasEu não duvido, embora saiba haver quem duvide, de que há acima regras básicas para uma vida privada e pública civilizada e decente. Admito que os ateus ou agnósticos, políticos ou não, possam ignorar os mandamentos 1, 2, 3 e 6 sem que lhes sobrevenham contratempos severos de ordem prática. Mas os outros seis... Ajoelhe-se você diante do Altíssimo, de Buda ou de uma carranca, convém respeitá-los. Um único pecado basta para danar uma vida. A combinação de dois deles pode ser explosiva.É claro que falo com um misto de ironia e, acreditem, até de amargura. O espetáculo que se viu nesta segunda no Senado só não foi mais patético porque estamos nos acostumando ao descalabro. Afinal, já vimos um presidente dizer em rede nacional que seu partido fez caixa dois para pagar a sua campanha e que ele de nada sabia; já vimos cabeças coroadas desse mesmo partido preparar uma trama para enlamear um adversário, sem que um só malandro tenha sido punido; como relata Diogo Mainardi na sua coluna desta semana, um empreiteiro tem relações muito especiais com a Presidência da República, e isso também é visto como coisa normal. Por que ficar chocado com Renan Calheiros?Mesmo assim, fiquei. Fiquei um tanto chocado já com a reportagem da VEJA. E olhem que a revista, à diferença do que sugeriu Renan, não avançou um milímetro em sua vida pessoal. Nada! Esta só entrou como elemento da narrativa à medida que o problema transitava da esfera privada para a pública; à medida que o funcionário de uma empreiteira virou protagonista da história.Renan armou um espetáculo deprimente. Começou — ele, sim, não a VEJA — por macular a família como instituição. A presença ali, de sua mulher, em vez de mimetizar uma Hillary Clinton (afinal, a mulher de Bill era personalidade pública; tanto é assim que é, hoje, a mais forte pré-candidata do Partido Democrata à Presidência), apenas servia ao melodrama, expondo-a ainda mais à curiosidade pública. Já não bastava que a alcova paralela fosse forçosamente tema da sua peroração, ele também escancarou, aos olhos da nação, a alcova oficial, a intimidade do seu lar, submetendo seu lar ao vexame. Mas, claro, sempre se dizendo muito constrangido. Se Hillary, ao se prestar àquele papel, ganhava pontos, como se viu em sua trajetória política — não custa lembrar que ela denunciou um suposto complô da direita —, a mulher de Renan nada levou. Ao contrário: aviltou-se; representou a Amélia de plantão; fez-se a grande mulher por trás de um... pequeno homem. Pequeníssimo.Não! Não vimos nada de moderno ou civilizado nesta segunda-feira. Ao contrário. Sou feminista. Sou casado com mulher. Tenho duas filhas. Eu as quero felizes e seres integrais. Eu educo as meninas para que nunca se vejam na contingência de ter de passar por isso. Quando Bento 16 falou da dissolução do casamento como uma “chaga” — e não “praga” —, foi tratado por certa mídia “progressista” como um cão sarnento, atacado por seu conservadorismo insuportável.É claro que pode haver segundas uniões felizes. E acredito que Deus também possa abençoá-las — sempre admitindo que a Igreja tem o direto e o dever de zelar por seus princípios. O que quero observar aqui é que, ao desrespeitar aquele padrão dito conservador do papa, Renan Calheiros foi, ele sim, um reacionário. A figura de sua mulher era a da submissão, a da humilhação, a de uma peça de propaganda que só servia à sua lenda pessoal. Pensei na minha mulher e nas minhas filhas e me senti agravado. O cristianismo encontrou nas mulheres as primeiras entusiastas justamente porque foi a religião lhes conferir dignidade.E me dei conta de que esta qualidade de políticos acabava de roubar mais um pedacinho do território da nossa decência. O Brasil seria certamente melhor se tal aviltamento da família fosse severamente punido nas urnas; o Brasil seria certamente melhor se os políticos temessem os escândalos; o Brasil seria certamente melhor se os homens públicos se esforçassem, a exemplo da mulher de César, para ao menos parecer honestos, ainda que não conseguissem sê-lo. Mas chegamos ao estágio em que já se dispensa até o fingimento.Na ânsia de se defender do que há de grave contra ele na esfera pública — a suspeita de relações incestuosas com uma empreiteira —, Renan alargou a fresta por onde apenas se entrevia a sua vida privada, escancarando-a. No vale-tudo para salvar a sua carreira política, transformou num espetáculo a sua vida pessoal, chamando a própria mulher para coadjuvar a sua pantomima. Sei bem que ela foi lá porque quis; algum benefício há de haurir ao desempenhar tão triste papel. Isso é problema dela. Interesso-me pela vida sexual do casal Calheiros tanto quanto pela de um porco-espinho. O presidente do Congresso Nacional, vestindo a roupagem do coronel, expunha a sua “senhora” à curiosidade pública. E isso importa, sim.Neste momento, macula-se bem mais do que o espaço da vida político-partidária. Essa mácula, Renan a carrega já desde a sua intimidade com o lobista de uma empreiteira. Macula-se, atenção!, um espaço tão o mais sagrado: o da vivência amorosa, o das relações afetivas, justamente o da família, onde, afinal de contas, tudo começa. Boa parte dos problemas ditos sociais no Brasil decorre, acreditem, da degeneração de costumes, da falta do respeito básico e elementar do marido por sua mulher, da mulher por seu marido, do casal por seus filhos, dos filhos pelos pais. Isso em qualquer classe social, tenham as pessoas a escolaridade que for. Esse laxismo está longe de fazer a felicidade das famílias; ao contrário, é fonte de danação. Mas, claro, eu sou “reacionário”, “de direita”, é bom não esquecer. O progressista é Renan Calheiros.O senador não quebrou nenhum tabu com vistas a uma sociedade mais moderna ou libertária. Ao contrário: fez o país regredir; fez regredir as mulheres, expostas, na figura de uma, a um ritual grotesco de humilhação, A chaga da degeneração dos costumes, públicos e privados, instalou-se no topo do poder. Dos Três Poderes.ReaçõesOs senadores, como se viu, classificaram de “convincente” o testemunho de seu par — os oposicionistas, ao menos, lembraram que é preciso analisar as “provas” que ele apresentou, embora não “provem” a origem dos recursos. Seu desmentido de que fosse o amigo empreiteiro a pagar as contas da namorada durou pouco. Foi contestado pelo advogado da moça — conforme se lê abaixo. A palavra “convincente” já era um exagero da generosidade e do corporativismo. Gontijo havia confirmado à VEJA os pagamentos. E foi claro: o dinheiro não era nem seu nem de Renan. Nota-se uma certa disposição para condescender com o presidente do Senado. E não faltará, na oposição e na situação, quem veja com olhos oportunistas o comando entregue a um pato-manco.A foto desta segunda foi o abraço de solidariedade do senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL), de quem ele já foi fiel escudeiro. Eu diria que o destino demorou para se encontrar com Renan, colhendo-o já na quadra da vida em que a barba branca lhe fica na pia do banheiro toda manhã. Talvez ele tivesse merecido tal confronto mais cedo, entre 1990 e 1992, quando era um dos expoentes, embora tendo saído ileso, da República de Alagoas.RetóricaA retórica de Renan Calheiros foi um verdadeiro show de horrores, variando da medicina para a novela mexicana, com algumas paradinhas na autocomiseração. Mais de uma vez, referiu-se à namorada ou ex-namorada, sei lá eu, como “a gestante”. Da gravidez propriamente, disse ser um “calvário”, querendo empregar, segundo entendi, a palavra com o sentido de “sofrimento”. Considerando que a narrativa envolve uma criança, filha sua, a escolha do termo define um caráter.Também citou Cícero, o célebre orador e senador da agonizante República romana, conhecido justamente por sua dureza com o que considerava degeneração dos costumes, daí que César, um populista agressivo e autocrático, tenha sido um dos alvos de sua retórica irada. O pretexto para citar Cícero foi lamentar que a disputa política tivesse chegado à vida privada dos indivíduos. O indivíduo Renan finge esquecer de que tudo começou porque um ser privado, um empreiteiro, chegou à vida do político Renan.Cícero lhe daria um pé retórico no traseiro e lhe sugeriria a renúncia. Não sou Cícero. Mas faço a mesma coisa.
Por Reinaldo Azevedo
Fonte: VEJA on-line

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