Por: José Marcelo Vigliar
SÃO PAULO - Nossos professores de processo penal nos revelam as finalidades da denominada “delação premiada”, analisando-a no nosso ordenamento jurídico e em outros. O benefício que o delator recebe varia, assim como variam as opiniões sobre o instituto. Há criticas severas e elogios rasgados aos benefícios reservados a quem indica outro(s) envolvido(s) em práticas delituosas e/ou detalhes sobre a empresa criminosa, facilitando a persecução penal.No pequeno glossário de MV Bill e Celso Athayde (Falcão – Meninos do Tráfico - Objetiva), o delator (traidor, alcagüete, “dedo-duro”) é designado “X-9”. Num dos capítulos do livro, eles narram o fim trágico de um deles. Trata-se de figura que, no código de honra do tráfico, deve ser exterminada com requintes de crueldade para servir de exemplo. “Xisnovar” é imperdoável (notem que eles conjugam o verbo que deriva do adjetivo mencionado).Há, de forma geral, um certo desprezo em relação aos traidores. Os “vira-casacas” são execrados. Seus nomes tornam-se sinônimos de traição. Não há necessidade de denominá-los traidores: basta que os chamemos pelos nomes de célebres “entregadores”, como “Judas” e “Calabar” (que em 1632 se debandou para o lado dos Holandeses e sua execração, à época, foi exacerbada pelo fato de ter se convertido à Igreja Reformada Holandesa, conforme nos relata Frans Leonard Schalkwijk, em “Por que Calabar?” – O motivo da traição). Recentemente, a National Geographic, em parceria com a fundação Maecenas for Ancient Art, trouxe a público um manuscrito, grafado em copta, datado do século quatro (descoberto nos anos 70, no Egito), que narraria que o maior “X-9” de todos os tempos, Judas Iscariotes, não seria, propriamente, aquela figura abjeta que ano a ano é malhada no “Sábado de Aleluia”. O referido manuscrito revela um “novo” Judas. Há poucos dias, o conhecíamos como aquele que não suportara o peso de seu ato de traição e, covardemente, se suicidara. Sabendo que Cristo havia sido entregue a Pilatos, após o fatídico beijo, buscaria por uma árvore para se enforcar. Morto, teria sido engolido pelo próprio Satanás, segundo tela famosa que retrata seu fim. No escrito encontrado, no “novo” evangelho apócrifo, Judas tem um outro fim. Arrependido de seu ato, ainda que tenha cumprido a missão que o próprio Jesus lhe revelara, teria ido para o deserto a fim de realizar exercícios espirituais, apos ser perdoado.Os documentários exibidos incansavelmente nesta “Semana Santa” pelo National Geographic Channel também nos dão conta da hábil utilização, em diversas oportunidades e para várias finalidades, daquela tradicional figura de Judas, tal e qual a conhecíamos: seria um dos emissários das trevas, aquele que por miseras 30 moedas entregara o Mestre.Sua atitude fora, inclusive, amplamente explorada e associada ao povo judeu. Um dos maiores “anti-Cristo” terrenos, que idealizou e viabilizou o holocausto, na sua propaganda anti-semita, não teve dificuldades de associar Iscariotes aos seus perseguidos. Imaginem Hitler interpretando as escrituras sagradas e buscando a conclusão de que todos os judeus teriam a índole de Judas! Até o silêncio da Igreja, que mais tarde levaria João Paulo 2° a pedir perdão, estaria justificado. Judas, vale verificar (eu mesmo o fiz após um desses documentários da National Geographic), vai sofrendo um processo de “demonização” progressiva, ao longo das narrativas contidas nos evangelhos que integram o novo testamento. Realmente, nos denominados “evangelhos canônicos”, que são contrapostos aos “evangelhos apócrifos” Mateus e Marcos não o retratam de forma tão discriminada como se vê em Lucas e João. Os evangelhos mais antigos são mais parcimoniosos, se comparados aos mais recentes. A campanha foi bem feita.Com certeza, isso cria um problema – e faço a conjectura por conta e risco próprios – para as novas igrejas que destacam a palavra bíblica como uma verdade indiscutível. Creio que os seus ministros devem ter grandes dificuldades em compatibilizar “esses diversos Judas”. Sempre haverá espaço para um casuísmo: dependendo da intenção e formação do líder religioso, a “verdade” será revelada de uma forma e Judas, mais uma vez, mais ou menos associado ao demônio.Judas, de acordo com o evangelho que, na realidade é de Jesus, ou seja, de acordo com a “boa nova” de Jesus, que ele mesmo comunicara (o que vem sendo chamado de “Evangelho de Judas”), será, obviamente, somado aos “apócrifos”. Há como se sabe, diversos evangelhos não aceitos, não oficiais. Entre os manuscritos encontrados no Mar Morto, conhecidos como “Biblioteca de Nag Hammadi“, figuram outros tantos evangelhos atribuídos a outros apóstolos de Cristo. Há o "Evangelho de Tomé" , o "Evangelho de Filipe", o "Evangelho de Pedro", e até mesmo um "Evangelho de Maria". A Igreja Católica, que sempre promove o reconhecimento da força santificada da mãe de Jesus, curiosamente, não aceita o seu evangelho. Deve haver um motivo.Seja lá como for, com a revelação dessa nova “boa nova” pouca coisa será modificada. Jesus não deixará de representar a doutrina que, acima de tudo, ele mesmo exemplificou. Antes, seu exemplo, fica mais e mais fortalecido. Sabendo tudo o que deveria suportar, não corre o risco de prejudicar o movimento que mais tarde se chamaria cristianismo. Revela a necessidade da traição a Judas, como um dos elementos necessários para o seu calvário. Mostra, acima de tudo, que a sua colaboração será necessária. Assim, mostra, mais uma vez, que a “colaboração do próximo” na obra cristã é sempre indispensável.O “novo evangelho”, parece-me, apenas fortalece o cristianismo, porque revela que Jesus tinha um propósito a cumprir e que sabia da necessidade de seu martírio. Designa um de seus apóstolos para desencadear a missão que, indicutivelmente, mudaria a história da humanidade para sempre.Como de costume, não consigo deixar de levar serviço para casa. Lembro, nesses momentos, das aulas de “Introdução ao Estudo do Direito”, do professor Tércio Sampaio Ferraz Junior, no meu primeiro ano de faculdade, que dizia que dali em diante aprenderíamos a qualificar os atos corriqueiros de nossas vidas como atos jurídicos. Eis que o vaticínio do professor se realiza. Procurei uma “natureza jurídica” para o “Evangelho de Judas”. Considerando que não provocará grandes transformações na doutrina cristã, ou seja, não terá uma “força rescisória”, ele se apresenta como uma peça de defesa intempestiva. Uma “contestação” apresentada muitos séculos depois que a revelia das acusações despejadas sobre o acusado já haviam produzido seus efeitos (e que efeitos!).Notem a força da cristalização de determinadas situações jurídicas: ainda que Iscariotes estivesse a cumprir “ordens superiores”, passou à história como o traidor do Filho de Deus. Traiu mais: traiu uma causa, uma ideologia, e pôde, porque não, ser apontado como o traidor de uma instituição, ainda que essa instituição tivesse sido solidificada tempos depois que a ocorrência dos fatos que lhe deram causa. Os “fatos afirmados” tornaram-se verdadeiros, diante da ausência de contestação tempestiva. Quem advogaria para Judas? Hoje, nosso art. 36 do CPC permitiria, no mínimo, que ele produzisse sua própria defesa. O fato é que os efeitos da preclusão temporal se fizeram sentir. A defesa, agora, é tardia, ainda que reforce a imagem e força daquele que fora traído. Até a forma da traição é extremamente significativa e torna o ato mais execrável: através de um beijo. Para amenizar esses efeitos (da revelia), desde que aceitemos a versão do “novo” evangelho apócrifo, que os cientistas afirmam se tratar de documento autêntico e contemporâneo aos demais evangelhos, talvez possamos qualificar a mais famosa das delações como uma “delação premiada”. Uma delação que premia o delator e resgata a sua imagem para colocá-lo ao lado de outros colaboradores da missão de Jesus Cristo.Aceitando as teorias da “relativização da coisa julgada”, talvez, de forma cristã, possamos modificar aquela imagem de Judas, sempre associado a um traidor e suicida. É verdade que teremos que negar os evangelhos canônicos e isso trará grandes conflitos e demandará o acomodamento de doutrinas e mais doutrinas.Não nos cabe ignorar os fatos que a ciência comprova. Dia a dia ela vem desafiando conceitos e cânones. No caso, a fé se fortalece.Vale lembrar que amanhã será dia de “malhar o Judas”. Há muitos “judas” novos (com aquele velho perfil atribuído a Judas). Fica uma pergunta: quem será o contemporâneo que mais emprestará seu semblante para adornar nossos “judas” que, após receberem as pauladas de estilo, serão incinerados?
Fonte: Ultima Instância
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