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domingo, abril 16, 2006

.Manifesto trans hiper-feminista

Por: Aline de Freitas

Baseado no Hot Tranny Action Manifesto, de Julia Serano
Para o propósito deste manifesto definimos "mulher trans" como qualquer pessoa que foi designada como do sexo "masculino" no nascimento, mas que se identifica e vive como uma mulher. Definimos "homem trans" como qualquer pessoa que foi designada como do sexo "feminino" no nascimento, mas que se identifica e vive como um homem. Não qualificamos os termos "mulher trans" ou "homem trans" baseado na habilidade pessoal em "passar batidx", nível hormonal, ausência, presença ou uso dos genitais - afinal é discriminatoriamente sexista reduzir qualquer pessoa (seja trans ou cisgênero) a seu próprio corpo ou requerer que viva dentro de ditames sociais relacionados à aparência e papéis de gênero. Cisgênero refere-se a todas as pessoas que não são consideradas trans. São as pessoas que vivem, percebem e se identificam com o gênero designado no nascimento. Rejeitamos plenamente o uso de termos como “hetero” para indicar pessoas não-trans já que hétero não é antônimo de trans. Denunciamos todxs que atentam a definir homens e mulheres trans de acordo com suas próprias crenças e teorias relacionadas a gênero e sexualidade, a todxs aquelxs que falsamente acreditam que seu próprio desconforto com nosso status trans justifica hiper-sexualizar nossos corpos, ridicularizar nossa transição, e/ou nos excluir dos espaços sociais. Homens e mulheres trans cada qual em suas especificidades, tendem a ser malignamente desprezadxs porque somos posicionadxs na intersecção de duas formas de preconceito de gênero: transfobia e misoginia. Transfobia é o medo irracional, aversão ou discriminação contra pessoas que não seguem os papéis sociais determinados para o gênero designado desde o nascimento. Da mesma forma que pessoas homofóbicas são muitas vezes guiadas por suas próprias tendências homossexuais, acreditamos que a transfobia é primeiramente e acima de tudo uma expressão da própria insegurança pessoal em ter que viver de acordo com ideais culturais de gênero. O fato de a transfobia ser um sentimento tão generalizado em nossa sociedade reflete a realidade de que essa mesma sociedade estabelece uma grande quantidade de pressão nos indivíduos para que se conformem com todas as expectativas, restrições, suposições e privilégios associados com o sexo com quer nasceram. A mais comum forma de transfobia ocorre quando negam às pessoas trans os mais básicos privilégios associados com o gênero com que se identificam. Exemplos comuns incluem o não reconhecimento de suas identidades, negação ao acesso a banheiros públicos de acordo com suas identidades, etc. A justificativa para essas negações é geralmente fundamentada na suposição de que o gênero das pessoas trans não é autêntico porque não possui relação com o sexo de nascimento. Ao assumir esta suposição, a pessoa transfóbica tenta criar uma hierarquia artificial - pela insistência de que o gênero das pessoas trans é "falso", tentam validar seu próprio gênero como "natural" ou "real". Essa linha de pensamento é extraordinariamente ingênua, já que nega a verdade básica de que no nosso dia-a-dia nós fazemos suposições sobre o gênero de outras pessoas sem ver suas carteiras de identidade, seus cromossomos, seus genitais, seu sistema reprodutivo, etc. Não existe gênero "real" - há apenas o gênero com que nos identificamos, e o gênero com que as outras pessoas nos percebem socialmente. Esta hierarquia de gênero artificial "real"/"falso" estabelece duas formas de privilégio contra as pessoas trans: Privilégio de nascimento é o privilégio desfrutado por todas as pessoas cisgêneros de ter nascidx no sexo que corresponde com o gênero com que se identificam. Este privilégio não apenas permite às pessoas cisgêneros dar como certo o fato de sentirem confortáveis com o sexo de nascimento, mas também os imuniza contra a transfobia. Privilégio de passar batidx é o provilégio de poder ser honestx com sua própria identidade de gênero e expressão sem ter seu sexo ou gênero questionado como uma conseqüência. Enquanto alguns poderiam teoricamente dizer que a grande maioria das pessoas cisgêneros “passa batidas" no gênero com que se identificam, na prática a palavra é usada apenas para descrever pessoas cuja apresentação ou expressão de gênero difere do sexo de nascimento. No Brasil infelizmente, pouquíssimas pessoas trans conseguem desfrutar deste privilégio. Isso porque mesmo que sua expressão de gênero seja totalmente congruente com sua identidade de gênero, a negação de nossas identidades, o fato de a grande maioria das pessoas trans terem de portar documentos com um nome que não corresponda a sua identidade e expressão de gênero faz com que nos tornemos presas fáceis para transfóbicxs. O foco do texto deste ponto em diante será dado em relação a mulheres trans. O único motivo para tanto é pelo fato da autora deste ser ela mesma uma mulher trans o que implica que sua experiência pessoal está limitada à realidade das mulheres trans. Uma dos pilares de sustentação do patriarcalismo está na hierarquização entre masculinidade e feminilidade. Misoginia é a tendência social em inferiorizar a feminilidade em nossa cultura. Assim nossa sociedade tende a ridicularizar mulheres trans pela sua feminilidade. Isso não se deve apenas por não seguirmos as regras de gênero, mas porque por necessidade abraçamos nossa própria feminilidade. De fato, é a expressão de nossa feminilidade e nossa necessidade em sermos mulheres que se tornam sensacionalizados, sexualizados e trivializados por outrxs. Quando uma pessoa trans é ridicularizada ou discriminada por sua expressão de feminilidade, elas se tornam vítimas de uma exclusiva forma de discriminação: misoginia trans. Quando a maioria das piadas feitas despendidas para mulheres trans são centradas em "homens usando vestidos" ou "homens que cortam seus pênis", isto não é apenas transfobia - isto é misoginia trans. Quando mulheres trans são facilmente vítimas de violência e assassinatos, isto não é apenas transfobia, mas misoginia trans. Quando organizações de mulheres ou organizações lésbicas fecham suas portas para mulheres trans, isto não é apenas transfobia, mas misoginia trans. Em uma sociedade androcêntrica, onde homens são considerados melhores que as mulheres e que a masculinidade é superior a feminilidade, não há nada mais ameaçador que a existência de mulheres trans, que a despeito de terem nascidas com o sexo masculino e de possuírem o privilégio da masculinidade, "escolhem" serem mulheres. Ao abraçar nossa própria feminilidade, nós colocamos em dúvida a suposta supremacia da masculinidade. Em ordem a minguar a ameaça que trazemos nesta sociedade androcêntrica, nossa cultura (por meio da mídia) usa todas as táticas que possuem em seu arsenal de sexismo para nos inferiorizar. 1) A mídia nos hiper-feminiliza: a grande maioria das histórias relacionadas a mulheres trans em filmes ou programas nos mostra como mulheres exageradas (excessos de maquiagem, vestidos e saltos exagerados) numa tentativa de enfatizar uma natureza "frívola" da nossa feminilidade. Ou retratando mulheres trans como possuindo características depreciativas associadas com a feminilidade tais como fraqueza, passividade, confusão, etc. 2) A mídia nos hiper-sexualiza: ao criar a impressão de que mulheres trans são motivadas a transicionarem por desejos sexuais. 3) A mídia objetifica nossos corpos: pela sensacionalização da cirurgia de redesignação sexual e pela discussão aberta de nossas "vaginas construídas" sem a discrição que normalmente acompanha discussões sobre genitais. Além da forma de tratamento dirigida a nós como "homem que se cirurgia para virar mulher" ou ainda falam de "pênis amputados" como se as mulheres se constituíssem pela ausência de um órgão. Além disso, todas de nós que não se submeteu ou que não querem se submeter à cirurgia somos reduzidas tão somente à nossa genitália. Isso por pessoas que sofreram tão grande lavagem-cerebral oriunda do falocentrismo, que acreditam que a mera presença de um pênis pode por em cheque nossas identidades femininas, nossas personalidades e todo o restante do nosso corpo. 4) A mídia é desmascarada em sua misoginia ao tratar de mulheres trans: ao propagar a falsa suposição de que nós nos transicionamos em ordem a atrair homens héteros cisgêneros. Isto, em combinação com nossa hiper-sexualização e objetificação, cria a impressão de que existimos tão somente para servir sexualmente aos homens. Dado o fato de a discriminação anti-trans estar junta com o sexismo, não é suficiente para ativistas trans desafiarem as regras de gênero - precisamos também desafiar a idéia de que a feminilidade é inferior à masculinidade. Em outras palavras, por necessidade, o ativismo trans precisa estar centrado no movimento feminista. Alguns podem considerar esta afirmação controversa. Com o passar dos anos, muitas auto-definidas feministas gastaram seu tempo rejeitando pessoas trans, e em particular, mulheres trans, muitas vezes fazendo uso das mesmas táticas que a grande mídia usa contra nós: hiper-feminização, hiper-sexualização e objetificação de nossos corpos. Estas pseudo-feministas proclamam que "as mulheres podem fazer tudo o que os homens podem" ao tempo em que ridicularizam as mulheres trans por qualquer tendência considerada masculina que possamos ter. Argumentam que as mulheres devem ser fortes e não ter medo de falar, ao tempo em que dizem que as mulheres trans agem como homens quando dizem suas opiniões. Elas dizem que é misoginia quando os homens criam padrões de comportamento e expectativas para as mulheres, ao tempo em que nos rejeitam por não estarmos adequadas em seu padrão de "mulher". Estas pseudo-feministas consistentemente pregam o feminismo em uma mão, enquanto praticam o sexismo com a outra. Nós, mulheres trans precisamos nos unir com mulheres pró-trans e aliadxs de todos os gêneros para construir um novo tipo de feminismo, um que entenda que o único caminho que podemos tomar para conquistar a verdadeira igualdade entre os gêneros é na abolição da transfobia e da misoginia. Não é suficiente para o feminismo lutar tão somente por aquelas nascidas com genitália feminina. Enquanto creditamos os movimentos feministas do passado por ajudar a criar uma sociedade onde a maioria das pessoas concorda com a expressão "mulheres e homens são iguais", lamentamos que de fato permanecemos longe de tornar possível dizer que a maioria das pessoas acredita que a feminilidade tem o mesmo valor que a masculinidade. Ao invés de encorajar as mulheres a fugirem da feminilidade, precisamos aprender a empoderar a feminilidade por si mesma. Precisamos parar de rejeitá-la como "artificial" ou "performática" e no lugar, reconhecer que certos aspectos da feminilidade (como da masculinidade) transcendem socialização e sexo biológico. Precisamos desafiar todxs que assumem que a vulnerabilidade feminina é sinal de fraqueza. De quando nos abrimos, seja honestamente comunicando nossos sentimentos, pensamentos ou ainda expressando nossas emoções, são atos de grande coragem e força ao contrário do silêncio e estoicismo típicos masculinos. Precisamos desafiar todos que insistem que mulheres que agem ou vestem-se femininamente estão sendo submissas ou passivas. Para muitas de nós, vestir-se ou agir femininamente é algo que fazemos para nós mesmas, não para outrxs. É nossa forma de reivindicar nossos próprios corpos expressar sem medo nossas personalidades. Não somos nós, mas sim todxs que assumem que nossa feminilidade é um sinal de que somos sexualmente subjugadas aos homens, quem são xs culpadxs em reduzir nossos corpos a uma mera condição de entretenimento. Não é tão simples para nós empoderar a feminilidade - precisamos também parar de pretender que existem diferenças fundamentais entre mulheres e homens. Isto começa com o princípio de que existem exceções para cada estereótipo de gênero. Este simples fato desaprova todas as teorias de gênero que apontam fêmeas e machos como categorias exclusivas. Precisamos nos livrar da idéia de que homens e mulheres são sexos "opostos", porque ao comprarmos este mito, ele estabelece um perigoso precedente. Se os homens são grandes, então as mulheres devem ser pequenas; e se os homens são fortes então as mulheres precisam ser fracas. E se ser homem significa ter controle de sua própria situação, ser mulher significa viver de acordo com as expectativas do outro. Quando compramos a idéia de que homens e mulheres são "opostos", torna-se impossível empoderarmos as mulheres sem ridicularizar os homens. Só quando acabarmos com a idéia de sexos "opostos", e nos livramos dos valores culturalmente derivados relacionados com expressões de masculinidade e feminilidade que finalmente nos aproximaremos da igualdade entre os gêneros. Ao desafiar a transfobia e a misoginia, podemos tornar o mundo mais seguro para todxs nós de todos os gêneros.




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