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domingo, janeiro 02, 2022

Alvissareira




Boas notícias poderão ser as do dia 1.º de janeiro de 2023 no Brasil, obviamente, se não votar em Bolsonaro

Por Miguel Reale Júnior* (foto)

É muito bom começar o ano lendo notícias boas. Então vamos a elas. O presidente da República reconduziu à presidência do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) o professor que o presidira, demitido por não se aceitarem as medições das queimadas na Amazônia apresentadas pelo instituto. Foi este ilustre físico homenageado pela prestigiosa revista Nature como um dos mais importantes cientistas do ano de 2019, tendo sido este mais um motivo para sua recondução.

Por falar em meio ambiente, o presidente da República restaurou no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) sua anterior constituição, desfeita pelo Decreto n.º 9.806, de 28 de maio de 2020, que estabelecera uma maioria de representantes do governo no conselho, para agora garantir, como dantes, a presença equilibrada, na composição do órgão, da sociedade civil, do poder público e do setor econômico, restabelecendo a democracia participativa essencial ao nosso mundo plural.

Outra medida merecedora de nota está na reedição das resoluções que haviam sido revogadas (Resoluções Conama n.º 303/2002, n.º 302/2002 e n.º 284/2001) e garantiam a preservação de áreas de restinga e manguezais e de entornos de reservatórios d’água e que disciplinavam o licenciamento ambiental para projetos de irrigação. A manutenção dos criatórios estará assegurada.

Além do mais, houve a decisão de reforçar significativamente tanto as Brigadas Indígenas que previnem e combatem incêndios florestais nas terras indígenas, especializadas em enfrentar alto risco de fogo, como as Brigadas Federais contratadas pelo Ibama para atuar não só na Amazônia, como também no Cerrado, na Caatinga e no Pantanal. Isso decorre da convicção, quase evidente, das consequências climáticas causadas pelas queimadas e pela destruição da floresta e das vegetações nativas de outros biomas. Soube-se que haverá ação conjunta de ministérios e governos estaduais na prevenção e repressão dura aos desmatamentos e incêndios, mormente na região amazônica.

Haverá, da parte do Ministério da Justiça e da Funai, ação conjunta com a entidade Articulação dos Povos Indígenas do Brasil para agir em proteção das populações indígenas, em especial a Ianomâmi, em face de invasores que destroem a mata e poluem os rios com mercúrio ao minerar.

A Secretaria Nacional de Segurança Pública e o Ministério da Justiça realizam reunião com os secretários de Segurança dos Estados para firmar convênio visando à adoção de câmeras pessoais pelos soldados e investigadores em suas ações policiais. Estará em pauta, também, a inclusão no currículo de formação da disciplina de direitos humanos, para que as ações preventivas e repressivas atendam aos interesses de proteção da incolumidade da sociedade, sem abusos que comprometam a imagem da polícia. A repressão ao trabalho escravo, carente de pessoal, será reforçada.

O Ministério da Saúde e a Anvisa irão trabalhar em conjunto com as secretarias estaduais e municipais de saúde, buscando dinamizar a vacinação de crianças, bem como de terceira e quarta doses para todos, além do controle de passaporte de vacinação em portos e aeroportos. O Instituto Butantan e a Fiocruz terão assento em grupo de assessoria do presidente da República para orientação das medidas que a ciência e a experiência indicam.

Será recriado o Ministério da Cultura e indicada para o cargo de ministro conhecida historiadora, cujos estudos sobre a civilização brasileira são notáveis, em especial em vista da nossa diversidade. A ministra dará ênfase à reformulação das atividades da Fundação Palmares de forma a atender ao disposto no artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição, ou seja, à efetiva proteção dos quilombos, objeto de indevidas ações possessórias. A ministra não atuou em novelas nem toca sanfona.

Neste campo, noticia-se que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) será novamente presidido por arqueólogo, sem curso de turismo, dedicado exclusivamente à proteção do patrimônio histórico e artístico, e não ao patrimônio de alguém determinado pelo presidente.

Por graça do Ministério da Educação, a exemplo de São Paulo, todos os Estados alcançarão o porcentual de 25% das escolas em tempo integral, cujos resultados têm sido excelentes quanto ao proveito do aluno. Há grande preocupação do Ministério da Educação com a qualidade dos cursos de mestrado e doutoramento, razão pela qual 500 consultores da Capes, que haviam se afastado, prometem voltar a colaborar para a garantia de qualidade da formação de nossos mestres e doutores.

A reforma tributária, que busca justiça social ao fazer tributos recaírem sobre renda e patrimônio, e não sobre produção e consumo, está sendo responsavelmente costurada com os diversos partidos pelo senhor presidente da República.

A reforma administrativa, a ser aprovada graças ao empenho do governo, eliminará nichos de privilégios e reduzirá gastos. Ambas as reformas serão essenciais no controle da inflação e na retomada da economia.

Gostou das notícias? Pois elas poderão ser as de 1.º de janeiro de 2023, obviamente, se não votar em Bolsonaro. •

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

O Estado de São Paulo

Retórica inflamada de Bolsonaro mascara vazio programático




Com o fim do terceiro ano de governo, já é possível fazer um balanço amplo do que foi a gestão Bolsonaro. O que se destaca é quão pouco o governo realizou, a despeito do furacão de controvérsias.

Por Pablo Ortellado (foto)

O governo Bolsonaro foi eleito com um discurso antiestablishment e, para ser fiel, parece ter se empenhado em construir uma relação ruim com o Congresso.

Foi o governo que mais enviou medidas provisórias desde Lula e também o que menos as aprovou. Em 2021, de todas as medidas provisórias enviadas, apenas 42% foram aprovadas (para fins de comparação, a taxa de aprovação no governo Lula foi de 94%). Bolsonaro também foi o presidente que menos emplacou projetos de lei. Levantamento do Observatório do Legislativo Brasileiro da Uerj mostra que é o governante que menos aprovou projetos enviados ao Legislativo desde a redemocratização.

A pauta de costumes, tão cara à mobilização militante, foi especialmente prejudicada — do pouco que foi aprovado, quase tudo foi na área econômica. Projetos relevantes, como os marcos regulatórios do gás e do saneamento, foram construídos em colaboração com o Congresso, e a reforma da Previdência e o Auxílio Emergencial foram fruto mais da ação do Congresso que do governo.

A má relação com o Congresso começou a mudar com a presidência de Arthur Lira e a adoção do vergonhoso expediente das emendas de relator, o orçamento secreto. A compra de apoio do Congresso enterrou a ameaça do impeachment, mas não melhorou muito a capacidade do governo de impor uma agenda legislativa. Além disso, deixou uma conta salgada, que a população está pagando.

Onde Bolsonaro parece ter deixado suas marcas, ainda que de forma puramente negativa, é naquelas instituições sob sua administração direta. Lá, o presidente parece ter adotado a máxima de Maquiavel na “História de Florença” de que, se não pode controlar uma cidade, é melhor destruí-la.

Na educação, na ciência, na cultura e no meio ambiente, áreas que a retórica militante de Bolsonaro acusa de serem dominadas por comunistas, houve cortes generalizados de recursos. Como ele parece incapaz de submeter o corpo técnico a suas alucinações ideológicas, optou por sufocar pelo orçamento as instituições.

No Enem, o governo tentou controlar as questões e submetê-las a censura prévia, gerando exonerações do corpo técnico. No CNPq, tenta relaxar as regras de avaliação da pós-graduação, gerando exonerações e cartas de protesto dos coordenadores. Na Fundação Palmares, retira simbologia africana do logotipo e censura obras da biblioteca — o presidente da fundação terminou afastado da gestão de pessoas por assediar moralmente os funcionários.

Como os esforços de controle têm impacto limitado, Bolsonaro tenta asfixiar o que subsiste. Para a educação básica, houve redução de 13% nos recursos em 2021, e as universidades federais seguem sofrendo cortes sucessivos no orçamento discricionário desde 2019. No CNPq, que financia a pesquisa científica, o orçamento de 2021 foi o mais baixo em 21 anos — em valores corrigidos pela inflação, é hoje metade do que foi em 2000. Na cultura, o orçamento do setor em 2021 foi o menor em dez anos, tendo sido reduzido praticamente à metade do que era em 2011. No meio ambiente também, a despeito da crise de queimadas e desmatamento, o orçamento foi o mais baixo em 21 anos.

O governo Bolsonaro tem uma retórica inflamada e às vezes revolucionária, mas, no período em que esteve no poder, trouxe pouquíssimas mudanças. O que fez de mais relevante é a destruição de instituições — legado perverso que deixará a quem assumir em 2023.

O Globo

Desordem e regresso?




Outra rodada de Lula x Bolsonaro, com certeza, nos manterá afundados no atraso por muitos anos, talvez décadas

Por Bolívar Lamounier* (foto)

Tenho procurado, mas ainda não encontrei alguém tranquilo quanto à disputa presidencial em que nos iremos engajar dentro de dez meses.

Não tendo a “terceira via” até agora dito a que veio (ou virá), o enredo será igual ao de 2018. Teremos Lula pintando Bolsonaro como um desequilibrado, Bolsonaro pintando Lula como ladrão e milhões de brasileiros concordando em que ambos estarão certos. Nesse quadro, só os muito obtusos não percebem quão escassa é a chance de conservarmos o que nos resta de normalidade econômica, política e moral.

Relembremos que, décadas atrás – com mistificações ideológicas recobrindo um tênue fundo de verdade –, quisemos crer que nossa linha evolutiva seria mais no sentido da civilização que no da barbárie. Euclides da Cunha quis acreditar que éramos um país fadado a se civilizar. Que, no longo prazo, nosso destino seria um convívio político pacífico, não um país resvalando para a rispidez e a violência; para a ordem e o progresso, não para a desordem e o regresso. Hoje, se tivermos juízo, devemos olhar para trás com tristeza e para a frente com preocupação, muita preocupação, porque outra rodada de Lula x Bolsonaro, com certeza, nos manterá afundados no atraso por muitos anos, talvez décadas.

A afirmação acima não é arbitrária. Não resulta de uma incorrigível propensão ao cassandrismo. Resulta da simples constatação de que não foram processos culturais espontâneos, uma microtrama social que mal chegamos a compreender, o que nos fez sair dos trilhos. Foi uma espantosa sequência de desatinos perpetrados pelos principais líderes políticos, como tratarei de exemplificar em seguida.

Em 1930, ao chegar ao Rio de Janeiro, Getúlio Vargas com certeza revirava os escaninhos de sua mente em busca de uma imagem do poder que acabara de conquistar pela força, e logo se encantou com a cena dos cavalos gaúchos apascentando-se ao redor do obelisco. A ideia do “mando”, ali à sua frente, bem concreta, deve ter lhe parecido mais palatável que a de reinstalar imediatamente as abstrações de um Estado constitucional. Procrastinando o retorno do País à normalidade jurídica, instigou São Paulo à luta armada e, pior, deixou entrever um veio profundo de sua índole política. Estava plantada nossa primeira polarização. A divisão do País em duas partes rancorosas.

Em novembro de 1937, valendo-se da popularidade que granjeara ao suprimir a intentona comunista, Getúlio decretou o autogolpe, outorgou uma Constituição de brincadeirinha e saiu calmamente para um jantar na embaixada da Argentina. Em 1948, indagado pelo jornalista Samuel Wainer sobre o papel que esperava desempenhar na eleição presidencial de 1950, ele respondeu: “Voltarei, mas não como político. Voltarei como líder de massas”. Tal frase dispensa interpretação. Aí está dito, com todas as letras, que a imagem dos cavalos ao redor do Obelisco não lhe saíra da cabeça; sagrado pelas urnas, não hesitaria em atropelar as instituições.

Ocorre que, uma vez rompido o fio invisível da normalidade política, a contraposição não tarda a se manifestar. Investindo-se de imediato na posição de contraponto antigetulista, Carlos Lacerda replicou com estardalhaço em seu jornal: “O sr. Getúlio Vargas não deve se candidatar à presidência da República. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve ser empossado. Empossado, devemos fazer de tudo para derrubá-lo”.

O que acima vai dito e mais o onipresente veneno da guerra fria são suficientes para relembrar os anos 50 do século passado.

Em 1961, o desmiolado Jânio Quadros renunciou à suprema magistratura, nutrindo a fantasia de que voltaria nos braços do povo, livre das amarras constitucionais. Ficou dependurado numa teia de aranha, mas o resultado de sua loucura, como sabemos, foi outro desatino: o veto de uma parte das Forças Armadas à posse de João Goulart, legitimamente eleito como vicepresidente. O espectro da guerra civil foi afastado por uma fórmula parlamentarista moderada, a ser submetida a plebiscito em 1965. Inconformado com as diáfanas restrições a que o parlamentarismo supostamente o submetia, Goulart manobrou dia sim e outro também para se livrar dela, antecipando o plebiscito para janeiro de 1963, no qual teve êxito. Desfeita, assim, a conciliação de 1961, Jango deixou-se encantar pela sugestão que lhe levaram alguns conselheiros: plenamente reintegrado na função presidencial, cumpria-lhe dar uma satisfação ao País. Essa foi a origem das reformas sem pé nem cabeça que tentou pôr em prática, radicalizando outra vez o quadro político.

Essa cascata de desvarios levou ao golpe militar que durou 21 anos e do qual só conseguimos sair graças à ação de líderes moderados e hábeis. Em seguida, o governo Fernando Henrique operou o milagre de controlar uma superinflação que já durava 33 anos. A transição para o governo Lula foi ordeira, tranquila e racional. Mas Lula, como sabemos, é uma mescla de dr. Jekyll e mr. Hyde; Bolsonaro é o que é. Esta, caros leitores e leitoras, é a passarela. Deixemos a banda passar.

*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

O Estado de São Paulo

Líder chinês encaminha terceiro mandato em 2022 de olho nos EUA - Editorial




O ano de 2022 deverá ser histórico para o líder chinês Xi Jinping. Já em fevereiro acontecem os Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim, sob o boicote diplomático da delegação americana. O objetivo dos Estados Unidos é chamar a atenção do mundo para as violações de direitos humanos dos muçulmanos, sobretudo uigures, na província de Xinjiang.

Mais relevante será o encontro do Partido Comunista da China (PCC) previsto para o final do ano, que deverá dar a Xi um terceiro mandato de cinco anos (uma hipótese considerada menos provável é que ele coloque alguém no cargo, mas continue ditando as regras). Mao Tsé-Tung governou o país como líder revolucionário por 27 anos. Deng Xiaoping, sem ocupar oficialmente o cargo máximo, deu as cartas por 19. Depois dele vieram Jiang Zemin e Hu Jintao, ambos por períodos de dez anos. Xi deu um sinal de suas pretensões em novembro, quando o Comitê Central do PCC aprovou uma resolução em que ele aparece no panteão dos grandes líderes, ao lado de Mao e Deng.

Desde que chegou ao poder, em 1949, o Partido Comunista usou diferentes estratégias para se manter no controle, entre elas o aprisionamento e a censura de elementos e grupos considerados “perigosos”. Mas a repressão por si só não teria sido suficiente para o êxito da empreitada. Em diferentes momentos, os comunistas investiram em autoridade carismática do “líder supremo”, imposição da ideologia, manipulação do sentimento de nacionalismo, leitura distorcida da História do país e crescimento econômico.

De todas essas condições, Xi só não tem podido contar com a forte expansão do PIB, que arrefeceu nos últimos anos. Para integrantes do PCC, mantê-lo no poder é a melhor maneira de encarar a ameaça americana. Em Pequim, os Estados Unidos são vistos como o maior desafio para a segurança interna, a soberania e a estabilidade da China.

Em novembro, Xi e o presidente americano, Joe Biden, cujo governo acredita que a China atua há anos para enfraquecer o poder geopolítico dos Estados Unidos, participaram de uma conversa virtual de mais de três horas e meia. O encontro começou com uma troca de palavras conciliadoras, mas, ao final, todos os temas espinhosos continuavam sem aparente solução: Taiwan, a corrida pela hegemonia militar na Ásia, rotas marítimas no Mar da China e disputas comerciais.

Em dezembro, a China fez de tudo para atacar a Cúpula da Democracia organizada por Biden. Lançou documentos e seminários ressaltando o que vê como as vantagens do sistema político chinês. Os comunistas não gostaram nem um pouco de Taiwan ter sido um dos convidados. Acima de tudo, ficaram irritados com a política de isolamento dos americanos. É muito provável que o próximo mandato de Xi seja marcado por embates cada vez mais espinhosos com os Estados Unidos.

O Globo

Golpismo derrotado - Editorial




Arquitetura da democracia resiste a Bolsonaro; cumpre proteger setores cruciais

Encerra-se um ano particularmente tumultuoso na política nacional, sobretudo pelo comportamento anômalo do presidente da República. Apesar dos percalços e da dissipação de energia cívica, a arquitetura da democracia brasileira resistiu ao golpismo aloprado.

O apogeu da cavalgada autoritária aconteceu nas manifestações do Dia da Independência, mas ela foi desmoralizada em menos de 48 horas por ausência de materialidade.

Jair Bolsonaro ameaçou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, com algo que nem soube enunciar —porque não há nada que o chefe de Estado possa fazer contra a autonomia de um Poder sob a Constituição de 1988.

Atiçou a massa de fanáticos com mentiras sobre a urna eletrônica e com bravatas sobre sair morto do Palácio do Planalto. As eleições de 2022 ocorrerão normalmente sob a égide das urnas eletrônicas, e Bolsonaro sairá da sede do governo derrotado, não martirizado, caso falhe a tentativa de reeleger-se, como hoje apontam as pesquisas.

Ao final da epifania restou uma chusma de caminhoneiros dispostos a sabotar os canais de abastecimento de 214 milhões de brasileiros. Até Bolsonaro percebeu que deixá-los agir seria abrir caminho para a anarquia e o impeachment.

Assim terminou o devaneio autocrático que só a lunáticos pareceu fazer sentido. Restou a face real de Bolsonaro, a de um presidente que não sabe e não quer governar.

A súbita elevação de um deputado patrono de corporativismos, insolente e inepto ao posto de dirigente político máximo dá-se bem a ver nas imagens finais de 2021. Enquanto uma catástrofe humanitária ocorria no sul da Bahia, castigado por inundações e deslizamentos em decorrência de fortíssimas tempestades, o presidente passeava de jet ski em Santa Catarina.

Se gasta seu tempo com assuntos de interesse geral, é para obstruir, com alegações de profunda ignorância científica, a urgentíssima vacinação de crianças contra a Covid, num quadro de nova escalada mundial das infecções.

A aventura de Jair Bolsonaro, que felizmente parece encaminhar-se para seu ocaso, deixa evidenciada a fortaleza dos pilares da democracia brasileira diante do teste mais desafiador sob esta Constituição.

Esse trauma político também deveria incentivar iniciativas reformistas para evitar que áreas cruciais da política pública, como saúde, educação, proteção aos vulneráveis e ao ambiente, fiquem à mercê de piromaníacos eventuais.

Do mesmo modo que o país soube proteger a gestão da moeda de apetites imediatistas de governantes, há de conseguir blindar o futuro de suas crianças e o bem-estar de sua população dos saqueadores e dos que bailam com a morte.

Folha de São Paulo

Desejos impossíveis para 2022




Novo ano não tem o direito de ser uma simples extensão do macabro 2021

Por Demétrio Magnoli (foto)

Mandela acreditava que tantas coisas "sempre parecem impossíveis, até serem feitas". Neste Réveillon, desisti do fácil, até do possível. Busco o impossível.

1. Ao longo de 2022, a pandemia se reduzirá a uma endemia como outras. Antes disso, que as sociedades finalmente sigam a ciência, eliminando a espessa camada de superstições depositada sobre a vida cotidiana.

Basta de controles aleatórios de temperatura, luvinhas plásticas em restaurantes self-service, máscaras ao ar livre fora de aglomerações. Abaixo o teatro do sanitarismo.

2. Que a Sociedade Brasileira de Cardiologia exclua Marcelo Queiroga, o estafeta que opera como sabotador da vacinação infantil. Que os conselhos de medicina punam os médicos charlatães da cloroquina, ivermectina e despachos similares.

Por quanto tempo os representantes corporativos continuarão a manchar a imagem de uma categoria constituída, majoritariamente, por profissionais sérios e dedicados?

3. Não pedirei a derrota eleitoral acachapante de Bolsonaro, para não desejar o simplesmente provável. Quero que, depois dela, procuradores e juízes contrariem a inclinação brasileira à conciliação entre as elites, julgando a coleção de crimes de um presidente infame.

4. Pazuello violou o regulamento do Exército ao usar o microfone num comício de Bolsonaro —e não sofreu sanção. Que, só para variar, os comandantes das Forças Armadas cumpram as regras militares.

5. Nostalgia é, geralmente, uma atitude reacionária --mas há exceções. Recordo um passado recente no qual, em polêmicas públicas, ninguém reivindicava a posição de porta-voz de etnias, raças ou gêneros.

O pacto implícito era que cada um só expressava seu próprio ponto de vista. Ou seja: indivíduos conversando, não representantes autoproclamados de grupos identitários. Eis um desejo impossível: retornar a um tempo no qual o argumento não era refém do "lugar de fala".

6. Na era das redes sociais, isto é, da desinformação em massa, o jornalismo profissional tornou-se ainda mais necessário.

Contudo, justamente nessa era, a imprensa adotou o atalho errado, imitando as próprias redes e conferindo o estatuto de notícia a meras fofocas ou arranca-rabos entre celebridades. Que o jornalismo redescubra sua função, apostando na inteligência dos leitores.

7. As plataformas globais da internet transformaram-se, basicamente, em órgãos oficiosos de regimes autoritários e movimentos extremistas.

O Facebook, em especial, foi a ferramenta escolhida para a condução de crimes incontáveis, da limpeza étnica dos rohingya, em Mianmar, à invasão do Capitólio, em Washington.

Que os acionistas e diretores dessas empresas sejam responsabilizados juridicamente pela difusão de correntes de fake news destinadas a destruir instituições democráticas e promover o ódio étnico ou religioso.

8. Eleições são, ou deveriam ser, um diálogo nacional sobre o passado e os caminhos para o futuro. Mas, para isso, seus protagonistas precisam tratar os eleitores como adultos.

Que a campanha de Bolsonaro renuncie a qualificar seus oponentes de "comunistas" ou "pedófilos". 

Que o PT abdique de acusar Bolsonaro de "fascismo", "neonazismo" ou "genocídio", concentrando-se nos muitos crimes reais cometidos pelo presidente.

Arthur C. Clarke, o genial escritor de ficção científica, concluiu que "os limites do possível só podem ser definidos quando os ultrapassamos, avançando rumo ao impossível".

Se ele tiver razão, desejar o impossível não é perder-se em devaneios, mas ajustar o foco de modo a identificar os contornos daquilo que, realisticamente, podemos mudar. 2022 não tem o direito de ser uma simples extensão do macabro 2021.

Folha de São Paulo

Mundo teve 198 milhões de casos de covid-19 em 2021




Número foi mais que o dobro do registrado nos 12 meses de 2020, quando 83 milhões de casos foram oficialmente diagnosticados no planeta. Mortes pela doença em 2021 chegaram a 3,5 milhões no mundo.

O ano de 2021 termina com 198 milhões de casos de covid-19 em todo o mundo confirmados nos últimos 12 meses. O número representa mais que o dobro dos 83 milhões de casos registrados no mesmo período de 2020. Já as mortes pela doença em 2021 chegaram a 3,5 milhões, 84% a mais que os 1,9 milhão do ano passado, segundo dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Porém, os números, embora ainda muito elevados, mostram um declínio na mortalidade do coronavírus, que foi de 2,2% em 2020 e de 1,7% neste ano. Por outro lado, a OMS admite que as cifras sao conservadores, já que os números reais podem ter sido maiores devido aos muitos casos e mortes não diagnosticados.

Nos dois anos acumulados desde o início da crise sanitária com a notificação dos primeiros casos na China à OMS, foram registrados no mundo 281 milhões de diagnósticos positivos e 5,4 milhões de óbitos.

A pandemia é uma das mais graves da história, embora seus números ainda estejam distantes dos causados pela peste bubônica em vários momentos, ou pela gripe de 1918-20, que deixou dezenas de milhões de mortes.

A pandemia atual também está passando por uma onda de aumento exponencial de diagnósticos positivos, que se acredita estar ligada à variante ômicron, com um número recorde de 1,3 milhão de casos confirmados no último dia 29, embora este "tsunami de contágios", conforme definido por a OMS, não vem sendo acompanhada por enquanto por um aumento nas mortes.

O ano de 2021, dedicado à vacinação do maior número possível de pessoas contra a covid-19, também chega ao fim com 9,15 bilhões de vacinas administradas em todo o mundo, tendo 58% das pessoas recebido pelo menos uma dose, segundo os dados fornecidos pelas redes nacionais de saúde.

Uma dezena de países têm taxas de vacinação acima dos 80%, incluindo Emirados Árabes Unidos, Singapura, Espanha, China, Coreia do Sul, Portugal e Cuba, embora quase uma centena de nações não tenham atingido a meta estabelecida pela OMS de atingir pelo menos 40% da população vacinada em todos os territórios.

Casos na Europa

No hemisfério norte, a pandemia continua a avançar. A incidência semanal de covid-19 na Alemanha subiu hoje para 214,9 casos por 100.000 habitantes, em comparação com 207,4 de quinta-feira e 265,8 há uma semana, segundo dados do Instituto Robert Koch (RKI).

Depois de quatro semanas de declínio, este é o segundo dia consecutivo de tendência ascendente. Nas últimas 24 horas, foram registados 41.240 novos casos, contra 35.431 na sexta-feira anterior, enquanto os óbitos relacionados com a doença chegaram a 323, abaixo dos 370 notificados há uma semana.

Desde o início da pandemia, a Alemanha registou 7.150.422 infeções confirmadas pelo coronavírus SARS-CoV-2, 111.925 pessoas morreram e 6.382.900 se recuperaram.

Em termos vacinais, 71,2% da população alemã recebeu o esquema completo da vacina, 38,6% recebram a a dose de reforço e 74,2% receberam pelo menos a primeira dose.

Segundo Christian Drosten, chefe do departamento de virologia do Hospital Universitário de La Charité, em Berlim, será necessária uma quarta dose com uma vacina adaptada às características da variante ômicron. "Penso que todos precisarão de uma dose de reforço com uma vacina atualizada", afirmou Drosten à rádio Deutschlandfunk.

O especialista alemão manifestou a sua expectativa de um aumento da incidência durante o inverno e adverte que a porcentagem de pessoas não vacinadas, mesmo entre as com mais de 60 anos, ainda é muito elevada na Alemanha.  "Temos muitas pessoas não vacinadas na Alemanha, também entre os maiores de 60 anos, e estas estão naturalmente em risco", sublinhou.

Para os vacinados, sustentou Christian Drosten, a pandemia pode terminar no próximo ano, mas ainda terão de ser considerados os não vacinados e serão necessárias algumas medidas, tais como o uso de máscaras em espaços fechados.

"Não ficaria surpreendido se no próximo inverno ainda tivéssemos de usar máscaras nos interiores. Mas penso que não teremos de novo muita pressão hospitalar", observou.

Ainda nesta sexta-feira, autoridades francesas de saúde afirmaram que a variante ômicron é já a dominante entre as infecções por covid-19 no país, onde o vírus teve uma "progressão significativa" nos últimos dias.

"62,4% dos testes realizados mostraram um perfil compatível com a variante ômicron" no início da última semana do ano, contra 15% na anterior, segundo o último boletim semanal das autoridades de saúde, publicado na quinta-feira à noite.

Esta progressão da variante ômicron era esperada, uma vez que ela é particularmente contagiosa e já vem se tornando dominante em outros países europeus, como o Reino Unido e Portugal.

A epidemia deixou até o momento um total de 123.552 mortos na França.

Deutsche Welle

Por que a humanidade pode ter iniciado a era de ouro das vacinas

 




Cientistas acreditam que as vacinas de mRNA podem ser a solução para o controle de muitas doenças.

Por Tim Smedley

Pouco mais de um ano atrás, Anna Blakney trabalhava em um campo da ciência específico e relativamente desconhecido em um laboratório em Londres. Na época, poucas pessoas fora do seu círculo científico haviam ouvido falar em vacinas de mRNA, até porque ainda não havia nenhuma disponível. Em 2019, ela deu uma palestra em uma conferência anual que reuniu um público pequeno, de algumas dezenas de pessoas.

Mas, hoje, ela é muito requisitada: é professora assistente da Universidade da Colúmbia Britânica (UBC, na sigla em inglês), no Canadá, e divulgadora científica com 253 mil seguidores e 3,7 milhões de curtidas no TikTok. Ela reconhece que estava no lugar certo e no momento certo para liderar a maior onda de progresso científico da sua geração. Blakney deu até um nome a essa nova era: o "RNAscimento".

Com a pandemia de covid-19, muitas pessoas agora conhecem — e até receberam — vacinas de mRNA, produzidas pela Pfizer-BioNTech e pela Moderna. Mas, quando Blakney iniciou seu PhD no Imperial College de Londres em 2016, "muitas pessoas duvidavam até se elas iriam funcionar". Agora, "todo o campo de mRNA está explodindo. Ele está virando o jogo na medicina", afirma ela.

E essa virada de jogo é tão grande que levanta enormes e empolgantes questões: poderão as vacinas de mRNA fornecer a cura do câncer, HIV, doenças tropicais e até nos dar imunidade supra-humana?

O ácido ribonucleico mensageiro — abreviado como mRNA — é uma molécula de cadeia única que conduz o código genético do DNA para o mecanismo de produção de proteínas da célula. Sem o mRNA, o seu código genético não seria utilizado, as proteínas não seriam produzidas e o seu corpo não funcionaria. Se compararmos o DNA com o cartão do banco, o mRNA seria a máquina leitora de cartões.

Quando um vírus entra nas nossas células, ele libera o seu próprio RNA, "enganando" nossas células sequestradas para que elas produzam cópias do vírus — na forma de proteínas virais — que comprometem nosso sistema imunológico. As vacinas tradicionais funcionam injetando proteínas virais desativadas, chamadas de antígenos, que estimulam o sistema imunológico do corpo a reconhecer o vírus, por exemplo, quando ele reaparece.

As vacinas de mRNA são inovadoras porque não é preciso injetar o próprio antígeno. No seu lugar, essas vacinas utilizam a sequência ou "código" genético do antígeno, traduzido em mRNA. É um "fantasma" da realidade, que engana o corpo para que crie anticorpos reais. O próprio mRNA artificial desaparece em seguida, com a ação das defesas naturais do corpo, que incluem enzimas que o decompõem, restando apenas os anticorpos.

'Bilhões de doses de vacinas de mRNA foram administradas em todo o mundo desde o início da pandemia de covid-19'.

Sua produção, portanto, é mais segura, rápida e barata, em comparação com as vacinas tradicionais. Você não precisa mais de enormes laboratórios biosseguros cultivando vírus mortais em milhões de ovos de galinha. Em seu lugar, um único laboratório pode sequenciar as proteínas do antígeno e enviá-las por e-mail para todo o mundo. Com essa informação, um laboratório pode produzir "1 milhão de doses de mRNA a partir de um único tubo de ensaio de 100 ml", segundo Blakney.

O mundo recentemente pôde assistir ao desenvolvimento desse processo em tempo real. Em 10 de janeiro de 2020, Zhang Yongzhen, professor de zoonoses do Centro de Controle e Prevenção de Doenças em Pequim, na China, sequenciou o genoma da covid-19, que foi publicado no dia seguinte. A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia de covid-19 em 11 de março. No dia 16 de março de 2020, utilizando a sequência de Zhang, foram iniciados os testes clínicos de fase 1 da primeira vacina de mRNA.

Em 11 de dezembro de 2020, a Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) aprovou a vacina contra a covid-19 da Pfizer-BioNTech, que entrou para a história não apenas como a primeira vacina de mRNA aprovada para seres humanos, mas também como a primeira a ter taxa de eficácia de 95% em testes clínicos.

A aprovação da vacina de mRNA da Moderna seguiu-se pouco depois, em 18 de dezembro de 2020. A vacina que detinha o recorde anterior de "mais rápida da história" — a vacina contra a caxumba — havia levado quatro anos para ser desenvolvida. As vacinas da Moderna e da Pfizer-BioNTech levaram apenas 11 meses.

Criadores da teoria por trás da vacina de mRNA

A teoria por trás da vacina de mRNA foi desenvolvida pela primeira vez pelos cientistas da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, Katalin Karikó e Drew Weissman, que receberam o Prêmio Lasker 2021 — o principal prêmio de pesquisas biomédicas dos EUA.

Em 2019, acreditava-se que levaria pelo menos cinco anos para que as vacinas de mRNA chegassem ao mercado. Mas a pandemia antecipou esse campo da medicina em meia década. Kathryn Whitehead, professora de engenharia química e biomédica da Universidade Carnegie Mellon, nos EUA, e importante colaboradora de Weissman e Karikó, admite que "poucas pessoas no mundo da terapia com mRNA teriam imaginado taxas de eficácia iniciais de 95% nesse cenário de emergência".

'O trabalho pioneiro de Katalin Karikó e Drew Weissman sobre mRNA estabeleceu o caminho para as vacinas contra a covid-19 da Pfizer e da Moderna'

Mas, agora, as possibilidades parecem infinitas. Ou, segundo Blakney: "é como dizer: muito bem, agora que funcionou para uma glicoproteína viral, quais outras vacinas podemos produzir? E, além disso, o que mais podemos fazer?"

Na Universidade de Rochester, nos EUA, Dragony Fu, professor do Departamento de Biologia, recebeu financiamento urgente da Fundação Nacional de Ciências para que o seu laboratório pesquise proteínas de RNA. Se estamos agora testemunhando a vacina de mRNA 1.0 contra a covid-19, a versão 2.0 abordará duas outras classes de doenças, segundo Fu: "uma são os patógenos, como Sars, mas você pode aplicar essa tecnologia a outros invasores, como o HIV. Já antes da covid, as companhias vinham desenvolvendo a fabricação de vacinas de mRNA contra o HIV." Ele também menciona zika, herpes e parasitas da malária no campo dos patógenos.

"A outra categoria é a das doenças autoimunes", segundo ele. "Isso é fascinante, pois está ultrapassando a restrita definição das vacinas." Fu afirma que o futuro poderá trazer "tratamentos" com mRNA, por exemplo, para reduzir inflamações. "Teoricamente, isso abre muitas possibilidades", afirma ele.

Yizhou Dong, professor de farmacêutica e farmacologia da Universidade do Estado de Ohio, nos EUA, especializou-se nas pequenas bolas de gordura, ou lipídios, necessárias para abrigar o mRNA e fornecê-lo com segurança às células, sem que ele seja destruído imediatamente pelo nosso corpo.

Os lipídios foram descritos como "heróis sem reconhecimento". Sem o aperfeiçoamento e aprovação final do fornecimento de lipídios em 2018, não teriam sido desenvolvidas as vacinas de mRNA contra a covid-19 em 2020.

Antes da covid-19, havia muitas pesquisas em busca de outras aplicações da combinação dessa nova técnica de fornecimento de lipídios com mRNA, segundo Dong, incluindo o combate a distúrbios genéticos, imunoterapia do câncer, doenças infecciosas e infecções bacterianas. "Se você tiver o antígeno e puder sequenciar a proteína, ela teoricamente deveria funcionar", segundo ele.

Graças aos avanços combinados do fornecimento de lipídios e da tecnologia de mRNA, as vacinas e tratamentos em desenvolvimento incluem a terapia de fibrose cística e esclerose múltipla com mRNA, da empresa Translate Bio; a vacina de mRNA contra o HIV, da Gritstone Oncology e da Gilead Sciences; as terapias contra fibrose cística e doenças cardíacas da Arcturus Therapeutics; e as terapias de mRNA para asma e doenças pulmonares graves sendo desenvolvidas pela start-up alemã Ethris, em conjunto com a AstraZeneca.

Também estão sendo pesquisadas soluções para doenças tropicais. A Moderna está próxima de iniciar testes clínicos de fase 2 (de 3) de vacinas de mRNA contra zika e chikungunya. Ambas são consideradas doenças "negligenciadas", porque afetam as populações mais pobres do planeta e não recebem pesquisa e financiamento adequado. A velocidade e o custo das vacinas de mRNA poderão alterar esse paradigma e sinalizar o fim das doenças tropicais negligenciadas.

'Desde o câncer até o HIV, passando por doenças tropicais até a resistência a antibióticos, os cientistas acreditam que poderá haver enormes possibilidades para a medicina com vacinas de mRNA'

Mas talvez a primeira vacina de mRNA nova a chegar ao mercado seja contra um inimigo mais conhecido: a gripe. Estima-se que os diversos vírus da influenza sejam responsáveis pela morte de 290 mil a 650 mil pessoas por ano em todo o mundo.

"Existe grande possibilidade de termos vacinas de mRNA contra a influenza no futuro próximo", afirma Kathryn Whitehead. "Essas vacinas de mRNA estão em desenvolvimento há anos e os testes clínicos até o momento têm sido encorajadores. Existem cinco testes clínicos em andamento para influenza A, incluindo um deles em fase 2."

Essas vacinas poderão vir na hora certa. Paul Hunter, professor de proteção à saúde da Universidade de East Anglia, no Reino Unido, e consultor da OMS, advertiu recentemente que alguns países podem estar à beira de uma epidemia de influenza que poderá causar mais mortes que a covid-19.

Diversas companhias farmacêuticas também estão pesquisando tratamentos e vacinas de mRNA contra o câncer. Anna Blakney afirma que "as células do câncer muitas vezes têm certos marcadores da superfície que as demais células do corpo não têm. Você pode treinar o seu sistema imunológico para reconhecer e matar essas células, da mesma forma que você pode treinar o seu sistema imunológico para que reconheça e mate um vírus. A ideia é a mesma: você descobre quais proteínas estão sobre a superfície das suas células de tumor e usa isso como vacina."

A ideia de medicina individualizada (específica para cada paciente) é uma perspectiva tentadora há anos — e pode ser outra porta aberta pelo mRNA, segundo Blakney. Teoricamente, "eles retiram o seu tumor, determinam sua sequência, veem o que está na superfície e fabricam uma vacina especificamente para você".

Versão 3.0

Se tratamentos contra o câncer, HIV e doenças tropicais estão a caminho com o mRNA 2.0, o que poderá acontecer com a versão 3.0?

Uma área de enorme preocupação na medicina moderna é a resistência a antibióticos. "Potencialmente, pode-se idealizar a fabricação de vacinas contra antígenos bacterianos como C. difficile ou outras bactérias de tratamento muito delicado", afirma Blakney. Ainda não existem testes a respeito, mas publicações científicas como a revista Frontiers vêm explorando essa ideia.

'Vacinas de mRNA autoamplificadoras reduzem a necessidade de vacinas de reforço e podem acabar se tornando o padrão'

Existe também potencial para aplicações comerciais mais gerais na área de saúde e bem-estar. Dragony Fu sugere, por exemplo, que a intolerância à lactose — que afeta centenas de milhões de pessoas de origem asiática, incluindo ele próprio, representando um total estimado de 68% da população mundial — poderá um dia ser alvo de estudos.

"Eu não tenho a proteína que me permitiria decompor a lactose. No futuro, poderá ser desenvolvida alguma forma de fornecer a mensagem, o mRNA, que produzirá a proteína que decompõe a lactose. Não é uma doença mortal, mas imagino que seria uma indústria bilionária", afirma Fu.

No Estado americano de Ohio, Yizhou Dong chegou a conduzir um teste bem sucedido com camundongos, sobre o controle do colesterol. Pessoas com altos níveis da proteína PCSK9 tendem a sofrer de colesterol alto e desenvolvem doenças cardíacas com pouca idade.

"Observamos que, após um tratamento [em camundongos], conseguimos reduzir o nível da proteína PCSK9 em mais de 95%. Este é, sem dúvida, um campo de pesquisa muito importante", afirma ele. Pelo menos uma companhia da área de biotecnologia está planejando conduzir um teste clínico utilizando mRNA para inibir PCSK9, seguindo o estudo de Dong.

Tudo isso levanta a questão: produtos terapêuticos de mRNA poderão fornecer imunidade quase supra-humana?

As vacinas de mRNA contra a covid-19 já levaram algumas pessoas a produzir níveis de anticorpos muito altos, capazes de neutralizar diversas variantes de covid-19 de uma vez.

Existe também a possibilidade de misturar diversas vacinas de mRNA em um único reforço de vacina, que poderá evitar câncer e vírus ao mesmo tempo. Atualmente, esta é apenas uma especulação, mas Fu afirma que "você poderá tomar todo um conjunto de vacinas diferentes... um coquetel de mRNAs que fabricam diferentes proteínas, de acordo com as suas necessidades específicas". A Moderna e a Novavax já estão desenvolvendo vacinas combinadas contra a gripe e contra a covid-19.

Obstáculos

Mas, antes que fiquemos entusiasmados demais, permanecem algumas questões sobre as vacinas de mRNA. Atualmente precisamos de doses regulares de reforço — e essas vacinas costumam ferir o seu braço, às vezes com efeitos colaterais cansativos.

No momento, o mundo real faz uso de vacinas de mRNA há menos de um ano. Foram observadas reações anafiláticas (ainda que não fatais) em cerca de 2 a 5 pessoas por milhão de vacinados nos EUA — um pouco mais, 4,7 por milhão, com a vacina da Pfizer-BioNTech, em comparação com 2,5 por milhão de vacinados com o inoculante da Moderna. Segundo uma análise, embora os números permaneçam baixos, eles são 11 vezes mais altos que a vacina contra a gripe.

"Ainda estamos trabalhando para compreender por quanto tempo dura a reação dos anticorpos e a reação celular", afirma Blakney. "Existem atualmente boas indicações de que existe uma memória muito boa da reação das células T com as vacinas de mRNA, mas a maioria desses testes têm um ano e meio e ainda estamos entendendo por quanto tempo dura essa imunidade." Ela acrescenta que a maioria das pessoas "realmente não quer receber várias vacinas por ano e sofrer mal-estar por três dias em seguida".

Mas o laboratório de Blakney na UBC está pesquisando uma alternativa: o saRNA, abreviação de "self-amplifying RNA" em inglês, ou mRNA autoamplificador. Ele tem os mesmos componentes estruturais do mRNA normal, mas, uma vez dentro de uma célula, pode fazer cópias de si próprio.

"Isso é uma grande vantagem, pois permite a aplicação de uma dose muito mais baixa, normalmente cerca de 100 vezes menos saRNA, em comparação com o mRNA", afirma Blakney. Isso significa maior eficiência com menos material e menos dor no seu braço.

Na corrida da lebre contra a tartaruga, as vacinas de mRNA podem ter saído na frente no combate contra a covid-19, mas o saRNA pode ganhar no final — e, de fato, o saRNA recebeu financiamento de US$ 195 milhões (R$ 1,1 trilhão) da AstraZeneca (mais que os US$ 29,5 milhões — R$ 167,5 milhões — recebidos pela Ethris para o desenvolvimento da sua vacina contra doenças pulmonares, mencionada anteriormente).

Enquanto isso, Fu, Dong, Whitehead e Blakney continuam a surfar na onda do RNAscimento. Ninguém sabe para onde ela irá levá-los, mas uma coisa é certa: ela nunca mais será o mesmo campo de pesquisa restrito e anônimo que eles conheceram um dia. Especialmente se você oferecer vídeos explicativos no TikTok, como faz Blakney.

"A minha missão ali é educar as pessoas sobre as vacinas", explica ela, rindo. "Recebo inúmeras perguntas aleatórias. Mas também há muitas pessoas que dizem que eu sou o motivo por que elas e seus parceiros receberam a vacina. E isso é muito marcante." 

BBC Brasil

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