Novo ano não tem o direito de ser uma simples extensão do macabro 2021
Por Demétrio Magnoli (foto)
Mandela acreditava que tantas coisas "sempre parecem impossíveis, até serem feitas". Neste Réveillon, desisti do fácil, até do possível. Busco o impossível.
1. Ao longo de 2022, a pandemia se reduzirá a uma endemia como outras. Antes disso, que as sociedades finalmente sigam a ciência, eliminando a espessa camada de superstições depositada sobre a vida cotidiana.
Basta de controles aleatórios de temperatura, luvinhas plásticas em restaurantes self-service, máscaras ao ar livre fora de aglomerações. Abaixo o teatro do sanitarismo.
2. Que a Sociedade Brasileira de Cardiologia exclua Marcelo Queiroga, o estafeta que opera como sabotador da vacinação infantil. Que os conselhos de medicina punam os médicos charlatães da cloroquina, ivermectina e despachos similares.
Por quanto tempo os representantes corporativos continuarão a manchar a imagem de uma categoria constituída, majoritariamente, por profissionais sérios e dedicados?
3. Não pedirei a derrota eleitoral acachapante de Bolsonaro, para não desejar o simplesmente provável. Quero que, depois dela, procuradores e juízes contrariem a inclinação brasileira à conciliação entre as elites, julgando a coleção de crimes de um presidente infame.
4. Pazuello violou o regulamento do Exército ao usar o microfone num comício de Bolsonaro —e não sofreu sanção. Que, só para variar, os comandantes das Forças Armadas cumpram as regras militares.
5. Nostalgia é, geralmente, uma atitude reacionária --mas há exceções. Recordo um passado recente no qual, em polêmicas públicas, ninguém reivindicava a posição de porta-voz de etnias, raças ou gêneros.
O pacto implícito era que cada um só expressava seu próprio ponto de vista. Ou seja: indivíduos conversando, não representantes autoproclamados de grupos identitários. Eis um desejo impossível: retornar a um tempo no qual o argumento não era refém do "lugar de fala".
6. Na era das redes sociais, isto é, da desinformação em massa, o jornalismo profissional tornou-se ainda mais necessário.
Contudo, justamente nessa era, a imprensa adotou o atalho errado, imitando as próprias redes e conferindo o estatuto de notícia a meras fofocas ou arranca-rabos entre celebridades. Que o jornalismo redescubra sua função, apostando na inteligência dos leitores.
7. As plataformas globais da internet transformaram-se, basicamente, em órgãos oficiosos de regimes autoritários e movimentos extremistas.
O Facebook, em especial, foi a ferramenta escolhida para a condução de crimes incontáveis, da limpeza étnica dos rohingya, em Mianmar, à invasão do Capitólio, em Washington.
Que os acionistas e diretores dessas empresas sejam responsabilizados juridicamente pela difusão de correntes de fake news destinadas a destruir instituições democráticas e promover o ódio étnico ou religioso.
8. Eleições são, ou deveriam ser, um diálogo nacional sobre o passado e os caminhos para o futuro. Mas, para isso, seus protagonistas precisam tratar os eleitores como adultos.
Que a campanha de Bolsonaro renuncie a qualificar seus oponentes de "comunistas" ou "pedófilos".
Que o PT abdique de acusar Bolsonaro de "fascismo", "neonazismo" ou "genocídio", concentrando-se nos muitos crimes reais cometidos pelo presidente.
Arthur C. Clarke, o genial escritor de ficção científica, concluiu que "os limites do possível só podem ser definidos quando os ultrapassamos, avançando rumo ao impossível".
Se ele tiver razão, desejar o impossível não é perder-se em devaneios, mas ajustar o foco de modo a identificar os contornos daquilo que, realisticamente, podemos mudar. 2022 não tem o direito de ser uma simples extensão do macabro 2021.
Folha de São Paulo