Não é fácil aceitar que os outros pensam diferente. E que eventualmente estejam certos, e nós errados, por absurdo que isso possa parecer.
Por Fernando Schüler* (foto)
Jordan Peterson escreveu uma carta que correu mundo, dias atrás, renunciando à sua atividade como professor, na Universidade de Toronto. Ele faz uma dura crítica à imposição dos novos códigos de “diversidade, inclusão e equidade” na vida acadêmica. Na prática, a intromissão de uma retórica política, exaustiva e unilateral, em um lugar onde deveria valer a ciência e o livre pensamento. Ele fala dos processos seletivos politicamente enviesados, dos professores levados a fazer cursos para curar “preconceitos implícitos”, do conservadorismo taxado como psicopatologia pelos novos “psicólogos sociais” e do clima persecutório, onde “meus alunos são inaceitáveis em parte porque são meus alunos, por causa de minhas inaceitáveis posições filosóficas”.
No Brasil, há claros sinais de fumaça nessa direção. Tempos atrás, acompanhei um desses grupos, na internet, no qual professores de uma universidade pública discutiam se era o caso de admitir “conservadores”, nos debates acadêmicos. Chamou a minha atenção a naturalidade com que aquelas pessoas se imaginavam donas da verdade, e a instituição pública como sua propriedade. Não passava pela cabeça delas que viviam em uma sociedade plural, na qual convivem liberais, progressistas ou conservadores, e uma provável maioria que não dá a mínima para alinhamentos políticos.
Em nosso debate público, me surpreende como se tornou comum a ideia de banir os adversários da internet. Vemos gente vibrando quando a Lei de Segurança Nacional é acionada (não importando muito o motivo) contra desafetos, celebrando a morte do divergente, parecendo realmente acreditar que fake news só existem do “outro lado”, e quase ninguém dá a mínima quando um órgão de Estado censura pessoas porque elas não dizem a “verdade” sobre as urnas eletrônicas.
Os exemplos iriam longe. Confesso não conhecer nenhum “intolerômetro” para saber, objetivamente, se somos hoje mais intolerantes do que há vinte ou trinta anos, mas desconfio que sim. Nos tornamos a sociedade de uma intolerância banal e difusa, que sem dúvida vem do Estado, com a crescente prática de criminalização da opinião, mas brota sobretudo da sociedade. A gênese desse fenômeno está na migração em larga escala do debate público para a arena digital. Na súbita conversão em massa do cidadão em militante. No transbordamento dos limites da política para a esfera da ética, da estética, das “grandes questões”, sobre as quais não temos acordo, nas sociedades abertas (ainda bem), e que compõem as chamadas “guerras culturais” do nosso tempo.
Exemplo curioso desse processo tivemos por esses dias, na carta assinada por jornalistas de um grande jornal reclamando da publicação de um artigo do antropólogo Antonio Risério. O que chamou a atenção não foi apenas a imagem de jornalistas tentando inibir o livre debate de ideias, mas a simplicidade algo clerical do documento. Ele diz basicamente que as teses de Risério são falsas, que isso foi demonstrado por “pessoas mais qualificadas”, que o jornalismo tem compromisso com a verdade, e como Risério não diz a verdade não deveria ser publicado.
Aquilo me soou como uma máquina do tempo. O mundo moderno levou 400 anos para reconhecer os valores da tolerância e da liberdade de expressão. E o fez a duras penas, com base em algumas ideias básicas. A primeira delas diz que ninguém é infalível. Foi o argumento de John Milton ao Parlamento inglês, no século XVII, pedindo o fim da censura de livros. Que ninguém deve se colocar como juiz da verdade e que o melhor a fazer é deixar que as pessoas pensem com a própria cabeça.
Outra ideia vem de John Stuart Mill. Ela diz que a verdade que não é permanentemente posta à prova torna-se apenas um dogma. Eliminada a possibilidade da refutação, da “lógica negativa”, temos apenas o “formulário”. Diz também que nossas interpretações sobre o mundo frequentemente se fazem de meios-tons, misturando o erro e a verdade. Então Risério podia ter razão em muitos de seus argumentos, mesmo que alguém ache sua teoria fundamentalmente equivocada. E a expressão dos divergentes, não seu banimento, é nossa melhor chance de viver em paz, em um mundo diverso.
Essas coisas podem parecer bastante simples, na teoria, mas no mundo real são bem complicadas. Não é fácil aceitar que os outros pensam diferente. E que eventualmente estejam certos, e nós errados, por absurdo que isso possa parecer. E agir assim quando nos ocupamos das coisas mais sagradas. Não se trata de divergir sobre a política de preços da Petrobras ou sobre a lei das ferrovias. Lidamos com os temas que as pessoas percebem como essenciais. Crenças, visões sobre a família, relações de gênero, raça, ou mesmo nossa identidade, como sociedade. Temas sobre os quais estamos destinados a viver em desacordo, para o bem de nossa própria liberdade.
Jean Bodin nos ensinou algo sobre isso, 400 e tantos anos atrás. Escreveu um livro, O Colóquio dos Sete, sobre os Segredos do Sublime, em 1588, contando a história de um debate impossível à época, entre um pensador católico, um judeu, um luterano, um calvinista, um muçulmano, um filosófico naturalista e um cético. Sempre fui fascinado por aquele encontro, imaginado em um tempo no qual hereges não eram banidos do Twitter, mas queimados na fogueira. Um dos primeiros exercícios da imaginação moderna encarando o dilema do pluralismo e sua resposta difícil: a tolerância.
O diálogo enfrenta os temas cruciais: a natureza de Deus, a verdadeira religião, o livre-arbítrio. Diálogo sem concessões, mas amigável. Visões radicalmente distintas postas à mesa, sem exigir renúncia de cada um a suas posições. O que, à primeira vista, surge como apelo ao entendimento se revela, por fim, como celebração do desacordo civilizado. Cada qual lança luz sobre um aspecto da verdade. A completude, ou a harmonia, reside na multiplicidade de vozes e ideias. Diálogo feito de um secreto prazer, anunciando a melhor promessa da modernidade: a possibilidade de divergir sobre as questões essenciais e ainda assim viver juntos.
Seria possível, nos dias de hoje, conceber um encontro como aquele? Talvez trocando o católico e o protestante pelos novos protagonistas da fratura moderna, que migrou da religião para a crença ideológica? Quem sabe envolvendo um liberal, um conservador, um progressista, identitários, à esquerda e à direita, e um cético, como Antonio Risério? A composição da mesa pode ficar por conta da imaginação de cada um. A pergunta é: estamos dispostos a aceitar que ela seja posta?
É interessante como Bodin, à época em que os ventos da liberdade nem sequer eram perceptíveis no Ocidente, soube imaginar a possibilidade de um diálogo que nós, depois de mais de quatro séculos, parecemos não saber. Nós que passamos por tudo, do inferno da Inquisição à tragédia totalitária no século XX. Nós que nos jactamos de saber tanta coisa, que nos orgulhamos de viver na era do conhecimento e da democracia, agora nos dedicamos a banir os divergentes da internet e evitar que eles apresentem suas ideias com liberdade.
Talvez o aprendizado da tolerância seja assim mesmo. Difícil, sempre provisório e fadado a ser feito e refeito a cada nova geração.
*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Revista Veja