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domingo, janeiro 30, 2022

Uma revolução cultural?

 




O tempo presente não se cansa de dar razão à velha máxima de Tocqueville: “Uma ideia falsa mas clara e precisa terá sempre mais poder no mundo do que uma ideia verdadeira mas complicada.” 

Por Jaime Nogueira Pinto (foto)

A ignorância e a indigência política e ideológica são uma das causas e um dos sintomas de um “atraso português” que tem vindo a arrastar-se no tempo e a agravar-se. O reality show da campanha eleitoral – no seu frenesi de sondagens diárias, de pequenos sensacionalismos para evitar “expulsões da casa”, de cães, gatos e coelhos tirados das cartolas, de anúncios de remédios milagrosos, de polarizações e linhas vermelhas arbitrariamente traçadas e retraçadas – tem mostrado bem a aparente aridez do deserto de ideias em que, há muito, se tem vindo a transformar a sociedade portuguesa, excitada aqueles que supostamente deviam liderá-la, informá-la e formá-la – políticos, jornalistas, comentadores.

Não digo que passemos a obrigar os dirigentes a fazer exames, exigindo-lhes conhecimentos mínimos de História geral e de História das Ideias para se candidatarem e exercerem funções, como na velha China dos Mandarins; mas podemos e devemos exigir-lhes um mínimo de consciencialização do abismo ético, cultural, intelectual, político e civilizacional a que a presente alienação nos conduz. E da necessidade de uma mudança.

Sei bem que isto das “revoluções culturais” ou das “mentalidades” é tão velho que chega a ser entediante. Desde os Estrangeirados do século XVIII aos Seareiros, passando por Herculano, pelos “Vencidos da Vida” e pelos Integralistas, que a cura proposta para o “atraso português” é, invariavelmente, a exigência de um urgente “Sapere Aude!” kantiano, ou de uma revolução cultural ou de mentalidades capaz de mudar as coisas. E nem a doença era então tão grave nem os antigos queixosos tinham a felicidade de poder recolher nos grandes media, nas redes sociais ou nas caixas de comentários tão abundantes e eloquentes provas da desgraça.

Mas serão as tentativas de revolucionar a cultura e as mentalidades – com livros, revistas, movimentos de ideias – ainda viáveis e eficazes? E será que alguma vez o foram? Será o trabalho das ideias, a batalha cultural, um esforço determinante, ou um entretenimento inútil?

Tem-se dito que as rupturas políticas – as revoluções ou contra-revoluções – foram sempre precedidas de revoluções ou contra-revoluções intelectuais ou culturais. Assim, as “Luzes” apareceriam como a causa principal da Revolução Francesa, ao destruírem as bases da legitimidade do Ancien Régime, por um processo de descristianização racionalista, que atingiu o Altar e, por inerência, o Trono. Em 1932, Daniel Mornet, em Origines intelectuelles de la Révolution Française, sustentava isso mesmo: que a revolução intelectual das Luzes fora a causa dos acontecimentos políticos e sociais conhecidos por Revolução Francesa. Mas em 1990 Roger Chartier, em Les Origines culturelles de la Révolution Française, virava o argumento ao contrário: as Luzes não tinham feito a Revolução – fora a Revolução que legitimara as Luzes. Ou seja, era a partir do real, do acontecido, da Revolução e do seu sucesso, que se tinham valorizado, a posteriori, os fios narrativos que a ela conduziam, que a explicavam e justificavam, isolando de um mundo de inúmeras possibilidades as correntes de pensamento que lhe tinham preparado o terreno.

O poder da palavra

O poder da palavra como criadora da mudança política foi investigado em muitas Histórias sobre as origens intelectuais da Revolução Francesa – de Alexis Tocqueville a Taine, de Georges Sorel a Daniel Mornet. A partir de Joseph de Maistre, de Bonald e do Abade Barruel as escolas contra-revolucionárias viram no jacobinismo e no terror o dedo da franco-maçonaria e responsabilizaram a acção anti-religiosa dos Filósofos e dos Libertinos pela destruição das crenças em que assentava a monarquia absoluta.

Mas mais importante do que a maçonaria foi talvez o facto de as elites terem mergulhado nos encantos perversos dos romances libertinos de Laclos, de Diderot, ou do marquês de Argens, amigo de Voltaire e de Frederico da Prússia e autor do best-seller soft-porn, Thérèse Philosophe. Estes escritos lúdicos, mais elitistas ou mais populares, completavam as teses filosóficas e racionalistas sobre a o origem e a legitimidade do poder político de Montesquieu, de Voltaire, de Rousseau e a Enciclopédia.

Embora haja algumas lendas sobre a influência e divulgação destes livros – o Contrato Social de Rousseau aparece muito menos nas bibliotecas da época do que o Emílio – não há dúvida de que, no seu conjunto, esta literatura aparentemente inócua serviu essencialmente para deslegitimar, nas próprias classes dominantes e beneficiárias do sistema, as bases do seu próprio poder.

Assim, quando eclodiu a Revolução, ninguém, incluindo o próprio Luís XVI, achava que Luís XVI fosse rei de França pela Graça de Deus, ou que isso fosse importante.

Se lermos qualquer boa história da Revolução Francesa, percebemos claramente que os revolucionários – que se vão também devorando entre si, com os radicais, os Jacobinos da Montanha, comendo os moderados, os Girondinos e depois com os Jacobinos exterminando-se uns aos outros e, finalmente, liquidando o próprio Anjo da Virtude, Robespierre – estão firmemente convencidos da sua razão e superioridade moral, enquanto os os partidários da ordem estabelecida estão possuídos por um sentimento de auto-culpabilização, com Luís XVI sempre a ceder à intimidação e à violência. Havia consciência disto na época, como pode ver-se no panfleto de um tal Abbé Proyart, publicado em Londres, em 1800: “Louis XVI, Détroné Avant d’être Roi, ou Tableau des Causes necessitantes de la Révolution Française et L’ébranlement De Tous Les Trônes”. Houve, pois, uma revolução intelectual – que, primeiro, desconstruiu o poder entre as elites – e depois uma revolução cultural – que materializou o descontentamento e o transformou em movimento e violência nas ruas de Paris.

O que se passou na Revolução Francesa, passa-se em quase todas as revoluções decisivas. Quem ler politicamente Os Possessos de Dostoievsky tem o retrato dos revolucionários; e quem assim ler Tolstoi encontra, nos seus aristocratas, inteligentes e bons, um complexo de culpa activo perante uma sociedade radicalmente estratificada, onde eles estão no topo: Pierre, em Guerra e Paz, quer redimir-se pela Franco-Maçonaria e André, promovendo os seus servos. O próprio Tolstoi, na segunda metade da sua longa vida e sempre sem sair do seu lugar de “bom e velho senhor”, faz o mesmo. Berdayev, um profundo analista do Zeitgeist do século XIX russo, sustentava que os espíritos religiosamente mais influentes na Rússia de então não tinham sido os teólogos, mas escritores como Tolstoi. Tolstoi aplaudira a política do czar Alexandre II que, em 1856, anunciara a libertação dos servos, que aconteceria em 1861 – coisa que o escritor começaria a fazer nas suas propriedades de Yasnaya Polyana. Nos anos 80, depois de traduzir os Evangelhos e criticar a Igreja Ortodoxa em nome de um cristianismo menos eclesial e mais cristológico, envereda por um populismo místico igualitário.

Algumas das críticas de Tolstoi à política e à religião dominante na Rússia czarista coincidem com as críticas dos socialistas revolucionários. O populismo cristão do escritor chega até a merecer o elogio de Lenine que, em artigos vários, se refere às “contradições” desse “latifundiário obcecado por Cristo”, aristocrata austero e generoso, que, apesar de tudo, representa a fraqueza do povo e dos camponeses, que choram e rezam, moralizam e sonham, escrevem petições e enviam “súplicas”.

Ainda vale a pena pensar a política?

O facto é que, historicamente, na Europa no mundo, e até em Portugal, as experiências doutrinárias foram mais frutíferas do que, à primeira vista, poderiam parecer.

E hoje, valerão a pena as revoluções intelectuais e culturais? Servirão para mudar o mundo e a política? Ou estaremos, como defendem muitos, num universo pós-moderno em que os “bites” e os “likes” tornaram inútil qualquer esforço pensante, qualquer modelo gramsciano de deslegitimação ou legitimação do poder, com vista à mudança ou à permanência no status quo?

Sob um aparente vazio de ideias, com as elites e o povo entretidos com os modernos sucedâneos dos romances libertinos ou do divertimento inócuo, num folclórico clima de “democracia ameaçada”, de “humanidade ameaçada” e de “planeta ameaçado”, age e funciona uma cultura de cancelamento que condiciona dirigentes políticos, agentes e mediadores culturais. A ela aderem, mais inconsciente do que conscientemente, os inocentes úteis que não querem deixar de ser modernos, moralmente superiores e sensíveis aos “novos direitos humanos”, à “igualdade entre pessoas e animais”, ao “respeito pelas minorias”, o que os torna maduros para a denúncia e para a auto-culpabilização.

A superioridade intelectual das Esquerdas, que remonta aos últimos anos do anterior Regime e que conheceu altos e baixos, está aí outra vez, sobre estas festivas formas, usando e abusando da máxima de Tocqueville de que “uma ideia falsa, mas clara e precisa, terá sempre mais poder no mundo do que uma ideia verdadeira, mas complicada”.

Por tudo isto, é necessária uma “descolonização” mental do país, e da própria Direita, em relação aos mitos que lhe vêm impondo: como a da superioridade ética e racional da Esquerda e actual dos seus mestres.

É todo um caminho, um caminho longo da libertação. Aconteça o que acontecer no Domingo.

Observador (PT)

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