Nenhum outro governo tem tantas, e tão estranhas, denúncias contra seus integrantes como o do altamente correto Emmanuel Macron.
Por Vilma Gryzinski
Pode um deficiente vítima de uma doença rara, que produz grave atrofia nos braços e nas pernas, dominar e violentar uma mulher?
Damien Abad, que sofre de artrogripose, diz que é impossível. Ele é ministro das Solidariedade, da Autonomia e das Pessoas Deficientes. Logo depois que foi nomeado por Emmanuel Macron, vieram à tona denúncias de abusos sexuais.
Uma das mulheres disse que ele pôs algo em sua bebida, durante uma festa, em 2010. Foi ao banheiro cuspir a bebida suspeita e, ao sair, ele a esperava na porta. Arrastou-a para o quarto e tentou obrigá-la a fazer sexo oral. “Fiquei com medo, apavorada, me debati e bati na barriga dele”. Outro convidado entrou no quarto e ela aproveitou para escapar.
Segundo outra acusadora, ela começou um ato sexual consensual com o acusado, mas ele a obrigou a fazer sexo anal, o que não queria.
Macron, que tem um senso muito forte da liturgia do cargo, o manteve no gabinete. Abad, escorado na sua deficiência, está processando a primeira acusadora por calúnia. Ele foi reeleito.
Mais estranho ainda é o caso da secretária do Desenvolvimento, a ginecologista Chrysoula Zacharonpoulou. Duas mulheres a acusam de violação durante consultas médicas.
Como uma mulher é envolvida nesse tipo de crime? Teriam as acusadoras confundido desagradáveis exames ginecológicos com violência sexual?
Tudo isso está sendo investigado. A médica de origem grega é uma especialista em endometriose que entrou no governo pouco antes da eleição legislativa do começo do mês na qual Macron perdeu a maioria e, segundo vários analistas, a capacidade de fazer um governo efetivo.
Manter acusados de violência sexual nos cargos, enquanto a justiça os investiga, é uma prática que Macron consolidou desde que o ministro do Interior, Gérald Darmanin, entrou na lista. Sua acusadora é Sophie Patterson-Spatz.
Ela diz que o incidente aconteceu em 2009, quando Darmanin era encarregado de assuntos jurídicos do partido de centro-direita que hoje se chama Republicanos. Procurou-o, por carta, para tentar revisar a condenação de um ex-namorado. Segundo sua denúncia, ele condicionou a ajuda a favores sexuais. Ela concordou em “entrar na dança”, segundo suas palavras. Na justiça, mostrou as mensagens trocadas:
“Abusar de sua posição. Da minha parte, é ser um crápula nojento. Quando sabemos do esforço que fiz para transar com você. Para que cuidasse do meu caso”.
Resposta:
“Você tem razão, eu sou com certeza um crápula nojento. O que posso fazer para ser perdoado?”.
Troca de favores, uma moeda repugnante, mas muito conhecida, de pessoas sem escrúpulos em posições influentes, pode ser considerada violência sexual? Como provar que foi um ato de constrangimento e não consensual? E o caso da mulher que iniciou com Damien Abad uma relação consentida, mas diz ter sido abusada depois?
Em empresas e instituições americanas, as regras são claras: toda relação entre superiores e subordinados, mesmo sem nenhum constrangimento, é terminantemente proibida.
O caso mais recente de grande projeção foi o de Jeff Zucker, o chefão da CNN. Ele tinha um envolvimento de muitos anos com Allison Gollust, vice-presidente e diretora de marketing. Aparentemente, os dois ainda eram casados com outras pessoas quando o relacionamento começou. Allison e o marido foram morar no mesmo prédio que Zucker e a mulher. Posteriormente, ambos se divorciaram e foram assumindo a relação conhecida dentro e fora de seu círculo profissional e social.
Ambos estão fora da CNN, que pertence ao grupo Warner Brothers Discovery. O novo presidente, Chris Licht, está aproveitando a virada para tentar baixar o tom excessivamente partidário do canal a cabo que começou como uma confiável “agência de notícias com imagens” e, durante o governo Trump, se transformou num órgão dedicado 24 horas à militância contra o presidente. O fim da era Trump trouxe uma consequente queda na audiência.
Nenhuma pessoa pode alegar, hoje, que ignora as regras em vigor sobre o comportamento impróprio em matéria de insinuações, convites, pedido de favores, mãos bobas e outras práticas que todo mundo sabe serem proibidas.
Cada caso dos ministros franceses acusados está sendo investigado e todos, obviamente, têm direito a só serem considerados culpados depois do devido processo legal.
Politicamente, é diferente. Macron aposta que irão se sair bem e não respingar sujeira no governo. É uma aposta arriscada. Nicolas Hulot, ex-ministro da Transição Ecológica e apresentador de televisão, está sendo acusado de abusos sexuais por seis mulheres. Uma delas diz que tinha 16 anos quando Hulot a convidou para assistir um programa que ele apresentava e, depois, em seu carro, tentou obrigá-la a fazer sexo oral.
Hulot saiu em lágrimas do governo, como se fosse um mártir ambientalista. Hoje, diz que está sendo alvo de “linchamento”.
Para que não se sinta sozinho, o ex-secretário do Meio Ambiente no governo Hollande Jean- Vincent Placé, adotado na Coreia do Sul quando bebê, teve que pagar uma multa de cinco mil euros por assédio sexual a uma policial que fazia a guarda de sua residência oficial. Em outro caso da mesma natureza, chegou a ser colocado em prisão temporária.
É alguma coisa na água que os ministros franceses bebem ou simplesmente falta de noção sobre as consequências de atos que a sociedade não aceita mais? Por acaso ignoram que as assediadas que aceitam os avanços são estritamente vigiadas pelas que os rejeitam? E que a rádio peão sabe tudo?
Revista Veja