Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense
A polarização entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro, que vem se mantendo nesta pré-campanha eleitoral, está sendo atribuída ao fato de que, pela primeira vez, temos uma disputa entre um ex-presidente, que governou por dois mandatos e deixou governo com alta aprovação, e um presidente que disputa a reeleição no exercício do mandato, quando sabemos que todos os que tiveram essa possibilidade foram reeleitos.
O resultado da disputa seria uma equação entre as realizações do passado e as adversidades do presente. É uma leitura da chamada real política.
FAVORITISMO – Mas será que o favoritismo de Lula pode ser atribuído apenas a isso? Parte de sua resiliência deve-se ao enraizamento do PT nos movimentos sociais e seu entrincheiramento nos grupos indenitários, em condições muito adversas, após o impeachment de Dilma Rousseff, o que merece mais reflexão.
Numa de suas entrevistas, o historiador Eric Hobsbawm faz uma observação interessante sobre o enfraquecimento dos partidos socialistas europeus, atribuindo-o às mudanças ocorridas na estrutura de classes da sociedade pós-industrial e ao fato de que a desestruturação da família unicelular patriarcal pela revolução dos costumes restringiu a capacidade desses partidos se reproduzirem no ambiente familiar, como sempre fizeram.
Os partidos marxistas fizeram a crítica da “família burguesa” como uma forma de dominação, mas a “família socialista” também era monogâmica e heterossexual. Foram os anarquistas, socialistas utópicos e as feministas que não se conformaram com os limites da dupla jornada de trabalho, contribuindo com a renda familiar e arcando com os afazeres domésticos, que caracterizavam a relação homem/mulher na família proletária moderna.
SALVAÇÃO DE LULA – Ao se refugiar nos movimentos identitários, no momento de refluxo de sua influência política, a militância petista deu cavalo de pau e foi uma tábua de salvação para Lula, tecendo, inclusive, as alianças que tornaram sua candidatura amplamente preferida entre os eleitores de esquerda.
A outra face dessa moeda, sem dúvida, foi a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, muito favorecido pelas circunstâncias políticas, a operação Lava-Jato e a forte repercussão da facada que levou em Juiz de Fora, em plena campanha, alavancando sua candidatura, enquanto estava entre a vida e a morte.
Bolsonaro saiu da sua bolha reacionária quando capturou o sentimento de preservação da família unicelular patriarcal, monogâmica e heterossexual, como estrutura social básica da sociedade, principalmente para as camadas mais pobres da população, ameaçadas pelas desigualdades sociais, a baixa renda, o desemprego, a desestruturação das relações homem/mulher e pais/filhos, a evasão escolar, as drogas e a prostituição.
IGREJA SEM FORÇA – A orientação conservadora da Igreja Católica, a partir dos papados de João Paulo II e Bento XVI, desarticulou as chamadas comunidades eclesiais de base. Seus militantes derivaram para o PT, porém a influência católica nas parcelas mais pobres da população brasileira se esvaiu.
As denominações evangélicas ocuparam esse espaço, empunhando a bandeira de defesa da família tradicional e as teses mais conservadoras do cristianismo, com exceção do celibato de seus sacerdotes e outros dogmas de Roma.
A aliança de Bolsonaro com esses setores evangélicos é muito mais responsável pela sua resiliência eleitoral nas camadas populares do que suas realizações e a força do corporativismo de setores beneficiados por seu governo, como militares, policiais, ruralistas, caminhoneiros, garimpeiros, atiradores, motociclistas etc.
PRÁTICAS DEPLORÁVEIS – O papel da religião, bem situado na esfera ideológica da sociedade, como outras instituições — o sistema educacional e os meios de comunicação, por exemplo —, também precisa ser considerado por esse ângulo antropológico, ainda que a aliança de Bolsonaro com as igrejas evangélicas tenha adquirido a dimensão das práticas mais deploráveis da política brasileira, como o clientelismo, o fisiologismo e o patrimonialismo, haja vista o novo escândalo do Ministério da Educação.
E a “gripezinha”? O fantasma que ronda a reeleição de Bolsonaro nas camadas mais pobres é o luto das famílias desestruturadas por 672.101 óbitos por covid-19, de um total de 32,5 milhões de casos registrados da doença.
Como a cobertura da vacina não é completa, o atual número de mortes atingiu a média de 214 por dia, o que agrava ainda mais a nossa crise social.