Nada acontecer é como estarmos numa aparência de democracia, onde o autoritário de plantão faz o que quer
Por Merval Pereira (foto)
O presidente Bolsonaro confirmou a avaliação de que ele é seu principal opositor. Na patacoada que protagonizou no Palácio da Alvorada diante de embaixadores, parecia um líder da oposição numa daquelas repúblicas bananeiras que reprimem e impedem adversários de se pronunciar publicamente. Falava contra seu próprio país na função de presidente da República, com o desembaraço de quem acusava a oposição de tentar impedir sua vitória nas urnas em outubro.
Falava ao lado de líderes militares da reserva que pareciam garantir sua manifestação ao mundo para o caso de o palácio onde mora ser invadido. Só que os inimigos imaginários de Bolsonaro fazem parte da mesma estrutura de poder a que ele pertence, como chefe de um deles, o Executivo. Os ataques ao Judiciário soaram ainda mais desajustados quando disse que o fazia para defender a democracia. E que ela dependeria da ação mais aprofundada dos militares junto aos tribunais eleitorais.
Militar interferindo na contagem de votos só existe nas ditaduras do Terceiro Mundo, onde o mandatário é eleito sempre com mais de 90% dos votos, deixando a pequena margem restante para dar a impressão de que a eleição correspondeu à vontade soberana do povo. Mas Bolsonaro acha que há uma conspiração a favor de seu opositor, o ex-presidente Lula, que receberia a maioria dos votos manipulados, como se fosse ele, Lula, quem controlasse os poderes do país.
A vergonha que o presidente Bolsonaro nos fez passar como nação, armando aquela patacoada diante de representantes de países estrangeiros, é fruto dessa paranoia que o faz chorar escondido no banheiro, como já confessou em entrevista. Ou dormir com um revólver embaixo do travesseiro. As teorias da conspiração dominam o cotidiano do presidente e de seus filhos, que levam o país ao desespero com o clima de tensão máxima que imprimem a suas atuações políticas.
Bolsonaro só sabe fazer política na base da agressividade, não lhe peçam para ser o homem do diálogo, da conciliação. Ele precisa de um inimigo para combater, nem que seja ele mesmo. É próprio do espírito de ditadores paranoicos ver conspiração por todos os lados, e, seja em público, seja em privado, estes lidam com seus subordinados com exigência de submissão que não dá espaço para pensamento próprio. Os casos dos assessores diretos como Gustavo Bebianno, secretário-geral da Presidência, do general Santos Cruz, do ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, do ministro da Justiça, Sergio Moro, dos ministros da Saúde e dos presidentes da Petrobras são eloquentes para saber com quem estamos lidando.
Por onde passa, vai deixando rastros de desavenças e destruição, porque esse é seu estilo. Deu certo em 2018, dificilmente dará em outubro, pois agora boa parte dos que votaram nele o conheceu nestes trágicos mais de três anos de governo e admite hoje que errou na escolha. Não que a escolha correta naquele momento fosse o PT, que saía de uma crise de corrupção que não ajudava a ver o futuro atrelado a ele. Hoje, na comparação, o PT volta a ser opção por falta de outra, embora mais uma vez, com sinal trocado, seja mais o instrumento para nos livrarmos de um mau presidente que uma solução visível para o país.
Bolsonaro já cometeu variados crimes de responsabilidade e nunca foi punido porque tem a vigiá-lo um benevolente procurador-geral da República, Augusto Aras, agora chamado a se posicionar por seus próprios pares. É claro que a situação é politicamente delicada, pois vetar uma candidatura de um presidente que tenta a reeleição no poder dará a ele o pretexto de afirmar que suas suspeitas não eram infundadas.
Mas é preciso que o processo penal que está no Supremo Tribunal Federal tenha continuidade, para que o funcionamento das instituições não seja mera retórica, não vire uma lenda urbana que só legitimará as ilegalidades que Bolsonaro comete todos os dias. Se as instituições estão funcionando, como se costuma dizer, não há do que reclamar. O funcionamento das instituições tem, no entanto, de gerar consequências práticas.
Nada acontecer é como estarmos numa aparência de democracia, onde o autoritário de plantão faz o que quer, certo de que não será molestado porque cooptou os órgãos de fiscalização e controle e os demais Poderes da República. Aconteceu sem dúvida na Câmara, onde o presidente Arthur Lira faz qualquer coisa para se manter no poder. Nenhuma democracia do mundo toleraria uma encenação vergonhosa como aquela do Alvorada, e alguma punição tem de acontecer para que as regras eleitorais sejam respeitadas e para que o país se recobre do vexame a que foi exposto diante do mundo.
O Globo