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domingo, julho 03, 2022

Programa social sem garantia de continuação é canalhice eleitoreira




Por Pablo Ortellado (foto)

Num gesto irresponsável, o governo Bolsonaro, por meio da sua bancada no Senado, propôs e conseguiu na quinta-feira a aprovação em duas votações consecutivas da Proposta de Emenda à Constituição 1/2022 (PEC 1/2022). A PEC decreta estado de emergência devido ao aumento do preço dos combustíveis e abre crédito extraordinário para criar e ampliar programas e benefícios sociais, entre eles o Auxílio Brasil, que substituiu o Bolsa Família.

Se a PEC for aprovada na Câmara, o valor pago pelo Auxílio Brasil às famílias terá um acréscimo de R$ 200, chegando a R$ 600 mensais entre agosto e dezembro de 2022. O governo pretende também zerar a fila dos que aguardam o benefício, incorporando 1,6 milhão de novas famílias, na estimativa oficial (um estudo da Confederação Nacional de Municípios estima a demanda reprimida em 2,8 milhões de famílias).

A ampliação do Auxílio Brasil é oportuna, já que a pobreza extrema e a fome são a emergência número um do país. Não há sombra de dúvida de que ampliar a cobertura e o valor do benefício pago é a medida social mais urgente e mais importante neste momento. Trinta e três por cento dos que recebem o auxílio seguem, mesmo com a ajuda do governo, passando fome (insegurança alimentar grave), segundo o último Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar. No total, 33 milhões de brasileiros passam fome, cifra que deveria nos envergonhar e dar prioridade absoluta ao problema.

Mas a ampliação do Auxílio Brasil foi feita de maneira tão atabalhoada e malandra que é difícil apoiá-la sem muitas ressalvas. É a coisa certa feita de um modo completamente errado. Por meio da decretação de estado de emergência, a PEC contorna as regras fiscais que limitam o gasto público e as regras eleitorais que impedem a concessão de novos benefícios em ano eleitoral.

Permite ampliar o Auxílio Brasil, mas apenas pelos últimos cinco meses do ano. Não estabelece nenhuma fonte para os recursos, produzindo desarranjo no Orçamento e incerteza para os 20 milhões de famílias atendidas sobre o que acontecerá a partir de 2023. Ninguém tem dúvida de que a ampliação do programa foi uma medida desesperada para Bolsonaro ganhar votos entre os mais pobres, faltando menos de cem dias para as eleições.

Não precisava ser assim. Se o governo não tinha tempo para fazer uma reforma tributária bem feita, poderia apenas ter introduzido a taxação de lucros e dividendos, progressiva, adotada no mundo todo, consensual entre os especialistas, e destinado os recursos do tributo para o Auxílio Brasil, criando uma solução definitiva e estável. Para isso, teria de ter planejamento e um compromisso não eleitoreiro com o combate à pobreza. Se tivesse feito isso no fim de 2021, não haveria conflito com a lei que impede a criação de benefícios a partir de 1º de janeiro do ano eleitoral.

A pobreza e a fome hoje estão num patamar tão elevado que mesmo uma medida irresponsável com o futuro e que tão descaradamente afronta a lei eleitoral terminou aprovada no Senado quase por unanimidade (apenas o senador José Serra votou contra). Que senador ou deputado votaria contra a concessão de um auxílio tão urgente para as famílias brasileiras? Reportagem do GLOBO mostrou que o uso do estado de emergência para contornar a lei eleitoral provavelmente seria contestado na Justiça Eleitoral, mas que partido provocará a Corte? Num momento em que a legitimidade da Justiça Eleitoral está sob ataque, ela barraria um auxílio que tira gente da fome?

Criar programas sociais que enfrentam a chaga social brasileira e receber votos por isso não é um problema. Mas fazer um programa social malandro e mal-ajambrado, que sinaliza aos eleitores uma solução quando é um mero remendo de cinco meses — provavelmente ilegal e sem fonte de recursos que garanta sua continuação — é apenas canalhice eleitoreira. 

O Globo

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