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sábado, julho 09, 2022

Eichmann e o livre-arbítrio voltado para a maldade




A história não está imune à repetição. Se as experiências políticas de morte violenta, de livre-arbítrio voltado para a maldade, não forem pensadas e conhecidas, a humanidade pode delas novamente tornar-se refém. 

Por Denis Rosenfield *

Capturado na Argentina pelo Mossad israelense, o nazista Adolf Eichmann foi julgado por um tribunal em Jerusalém, em 1961, e condenado à morte por enforcamento, no ano seguinte — a história do seu julgamento foi tema de um livro clássico da pensadora alemã Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, no qual ela fala sobre a “banalidade do mal”. Seis décadas depois, seu nome ainda desperta reflexões. Seria ele um personagem banal, mero elo de uma cadeia produtiva da morte que o ultrapassava? Ou era ele uma pessoa plenamente consciente do que fazia, um criminoso de firmes convicções ideológicas, para quem matar judeus, homossexuais, ciganos e Testemunhas de Jeová fazia parte de sua missão? Era ele meramente passivo ao obedecer ordens ou era um membro ativo do Partido Nazista, um dos artífices do extermínio coletivo, da Solução Final?

A recente divulgação de uma série de entrevistas gravadas quando Eichmann vivia escondido na Argentina permite eliminar quaisquer dúvidas quanto às suas convicções nazistas. Os áudios, denominados Confissões do Diabo: as Gravações Perdidas de Eichmann, lançam uma luz aterradora sobre as “façanhas” deste agente da maldade.

Em um deles, Eichmann esmaga uma mosca e fala da “natureza judaica” do inseto. Ele também afirma que não dava a mínima se os judeus enviados aos campos de concentração morriam ou não. “Se tivéssemos matado 10,3 milhões de judeus, eu diria com satisfação: Muito bem, destruímos um inimigo. Deste modo, teríamos cumprido nossa missão”, diz o nazista, em uma das gravações.

Tais frases perturbam a nossa normalidade, não afeita a conceber tal tipo de anormalidade. Contudo, não se trata de uma anormalidade qualquer, uma espécie de ponto fora da curva, mas um projeto de poder voltado a instaurar uma outra ordem de normalidade, prevista para durar décadas, não fosse a derrota militar nazista pelas tropas aliadas. Ou seja, estamos diante de um tipo de regime político cujo traço essencial é a destruição por morte violenta de todos aqueles que os seus líderes consideram como inimigos. A denominação de “inimigo”, por sua vez, é ela mesma ficcional, pois dependente da intenção política daqueles que assim agem, não representando necessariamente um inimigo real. Os judeus representavam menos de 1% da população da Alemanha, desarmados, e, no entanto, foram “vistos” como instrumentos que iriam destruir a própria Alemanha e a “superior civilização racial ariana”.

A questão reside, então, no tipo de maldade representada por Eichmann e, por extensão, por outros personagens como Adolf Hitler e Heinrich Himmler, comandante militar da SS, a polícia de Estado. Seus atos não se caracterizam apenas como uma transgressão do bem, seja sob sua forma moral ou religiosa, mas por serem voltados para o mal enquanto mal. Isto é, trata-se da produção intencional, consciente, da maldade, independentemente de qualquer valor, regra ou padrão positivo. Há aqui uma reviravolta no que tange ao comportamento humano e aos seus princípios, a tudo aquilo que se considerava até então como humanidade.

O padrão seria, assim, a maldade enquanto tal, o que implicava a criação de uma nova mentalidade, de um “novo homem”, que não sentisse nenhuma espécie de arrependimento ao executar formas extremas de violência e crueldade. Himmler, em particular, em seus discursos aos membros da SS, enfatizava que deveriam pautar-se pelo mal, matando, nos dizeres de Eichmann, judeus como se mata insetos. Não haveria mais “transgressão”, mas afirmação própria de “valores” mais elevados, os da morte violenta e da maldade.

Eichmann representa precisamente este outro homem nazista. Os áudios foram entrevistas concedidas por ele a um jornalista nazista holandês, Willen Sassen, antigo SS, com o objetivo de posterior publicação de um livro após a sua morte. O horror deveria ser mais ainda exibido, os feitos de indivíduos “superiores” que exterminavam homens, mulheres, crianças, bebês e idosos pelo bel prazer de sua destruição.

Os exemplos são abundantes, os mais destacados sendo os do tipo de morte infligida a bebês e crianças, que, sob o olhar de mães impotentes, tinham de suportar a visão dos seus filhos sendo atirados contra os muros ou sendo objetos de tiro ao alvo. Depois, o carrasco podia ser simplesmente “normal”, “banal”, ao escrever carinhosamente para suas mulheres e seus filhos. A mulher de Himmler, Marga, ao visitar um instituto de Botânica, no campo de concentração de Dachau, chegou a declarar que esse lugar era um “jardim encantado”.

No que diz respeito à banalidade de Eichmann, o processo no tribunal revela um homem melífluo, esquivo, afeito ao uso de duplicidades e ambiguidades, senhor de si, controlando perfeitamente o que diz, sempre se escudando em ser uma pobre vítima de uma máquina muito maior do que ele. Omite, intencionalmente, sua responsabilidade de uma forma calculada e deliberada. Hannah Arendt, que esteve presente ao julgamento, inadvertidamente foi capturada por esta performance teatral, não tendo o cuidado de perscrutar para além das aparências. Foi com base nas audiências que ela cunhou o conceito de banalidade do mal. Segundo Hannah, a massificação da sociedade teria criado uma multidão incapaz de fazer julgamentos morais. Burocratas como Eichmann, portanto, cumpririam as ordens que receberam sem maiores questionamentos.

Vladimir Jankélevitch, filósofo francês, assinala a propósito que, olhado de perto, “o carrasco é bem mais simpático e o sadismo não se lê sempre na face de um sádico”. Não haveria, portanto, por que se surpreender com a banalidade de personagens como Eichmann e Himmler. Hannah Arendt foi incapaz de ver este “outro da maldade”, conformando-se com o desempenho de um homem moralmente mau, apresentando-se como do bem, mera vítima a cumprir ordens. Terminou fazendo parte desse teatro da maldade.

Eichmannn, em seu julgamento em Israel, em 1961, quando confrontado a declarações suas, manuscritas, apresentadas pelo procurador-geral Gideon Hausner, a propósito de um fragmento desses áudios agora tornados públicos, procura esquivar-se, dizendo simplesmente que teria bebido demais. E houve quem acreditasse que se tratava apenas de uma bebedeira, quando lá se jacta de todo o seu poder, assume suas responsabilidades e diz que teria gostado de ir além, assassinando mais de 10 milhões de judeus, pois assim teria cumprido ainda melhor a sua missão. Milhões de judeus deveriam ser mortos, sim, porque eram o “inimigo” a ser destruído. Estava perfeitamente imbuído de seu imenso prestígio.

Nos áudios, assim como em outros testemunhos da época, inclusive de nazistas colegas seus, ele aparece como um personagem fanático, cioso de seus deveres, agilizando-se em suas matanças, indo mesmo além das ordens recebidas, como na organização apressada de envio de judeus húngaros para Auschwitz, aproveitando-se da queda de um governo que até então os protegia. O que contava era assassinar o máximo de judeus, ciganos, homossexuais e Testemunhas de Jeová, no menor espaço de tempo.

Eichmann era particularmente industrioso para alcançar seus objetivos. Contudo, quando confrontado com falas suas, procurava apresentar-se como normal, citando mesmo a filosofia moral de Immanuel Kant, eximindo-se de qualquer responsabilidade, como foi igualmente o caso de suas declarações em um interrogatório conduzido pelo Comissário Less. Para ele, havia sobretudo o comprometimento com sua “missão”, representante que acreditava ser de uma “nova in-humanidade” arquitetada por Hitler e Himmler. Interrogado, pretende ser inclusive um “historiador”, citando um livro de Léon Poliakov, Breviário do Ódio, como se não fosse ele um ator político de uma das mais terríveis experiências da humanidade. Hannah Arendt simplesmente caiu em sua armadilha.

Para além de seu valor histórico, esses áudios nos colocam diante de questões centrais relativas à condição humana e a experiências históricas que podem ser repetidas, tudo dependendo de quem as confronte. Sem uma consciência de resistência, o caminho pode abrir-se a essas formas da maldade. Há, sim, atos livres que se voltam para a maldade, para sua implementação e realização. Pense-se, ainda, no extermínio de metade da população cambojana pelos comunistas de Pol Pot. Eles tinham estudado marxismo-leninismo na França e se apresentavam sob o manto do bem, para encobrir sua essência terrível. Pense-se igualmente no genocídio dos ucranianos, na década de 1930, produzido pelos stalinistas que almejavam destruir os camponeses deste país pela fome. Os relatos são simplesmente horrorosos. Também os carrascos se diziam portadores do bem na luta contra os “kulaks”, outra forma arbitrária de denominação do que tomavam como inimigo a ser destruído.

A história não está imune à repetição. Se as experiências políticas de morte violenta, de livre-arbítrio voltado para a maldade, não forem pensadas e conhecidas, a humanidade pode delas novamente tornar-se refém. Nesse sentido, os áudios de Eichmann são uma importante contribuição para todos aqueles que almejam uma sociedade melhor, ciente dos perigos que a espreitam.

*Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia e autor do livro Jerusalém, Atenas e Auschwitz: Pensar a existência do mal (Topbooks)

Revista Crusoé

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