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sexta-feira, julho 22, 2022

A batalha dos pronomes e a grande guerra identitária




Um mundo livre não é a preto e branco. Desde logo porque a cor de pele está longe de ser uma cultura, exceto para racistas ignorantes, e as grandes culturas sempre se fizeram de múltiplas apropriações. 

Por Bruno Cardoso Reis (foto)

Parece que a batalha dos pronomes chegou a Portugal. Pelo menos aterrou com estrondo nas páginas de opinião de vários jornais. Não me espanta. Era tão previsível que a previ. O grande paradoxo do esquerdismo radical europeu é aliar um visceral antiamericanismo com uma obsessiva atenção à cultura política e à linguagem norte-americanas, com uma tendência para copiar acefalamente modas ianques que pouco têm a ver com a realidade europeia. Era inevitável chegarem à Europa ecos desta grande guerra identitária norte-americana. Neste caso podemos dizer que felizmente em Portugal tendemos a ser melhores a pregar que a implementar.

Fátuas de pregadorxs

Nas colunas críticas desta tendência de identitarismo linguístico, de Pacheco Pereira a Ricardo Araújo Pereira, não está em causa a rejeição do racismo, da discriminação por questões de género ou orientação sexual, ou da violência contra pessoas por causa das suas opções sexuais ou cor da pele. Qual é então o grande problema que justificou uma série de fatwas indignadas na imprensa e nas redes sociais sobre estes incréus? Xs pregadorxs desta grande guerra identitária e linguística têm uns mandamentos relativamente à qual exigem respeito absoluto, ou torna-se inevitável a violência sobre xs oprimidxs. E ela é realmente inevitável para uma seita que tem como um dos seus dogmas que o uso de linguagem por eles considerada tabu constitui uma forma de violência.

Não está em questão nesta batalha dos pronomes a procura de soluções para problemas reais de discriminação ou violência. Os fanáticos raramente estão interessados nos factos, nos debates, nos compromissos, nas soluções práticas, mas sim em impor a sua agenda e o seu vocabulário sem discussões e sem distrações.

Vai uma Revolução Cultural?

O que nos diz o passado a este respeito? Todas as grandes ditaduras nasceram da defesa sem compromisso das grandes causas. A China do tempo de Mao Zedong era uma sociedade terrivelmente desigual e injusta. A tomada do poder por Mao em 1949 gerou grandes expectativas em milhões de injustiçados. Mas não trouxe o fim da injustiça e da desigualdade, e sim o redobrar das mesmas pela concentração do poder no Partido Comunista que levou a cabo uma sangrenta repressão culminando num regime totalitário policiando toda a linguagem. No pico da Revolução Cultural Maoista, como nos conta a obra fascinante de Yu Hua que a viveu, os únicos livros autorizados eram as obras completas de Mao Zedong e dois ou três outros autores escolhidos. Escrever “amor” no quadro da escola era profundamente subversivo e justificava uma caça ao homem. A literatura tinha de ser traficada, lida e copiada secretamente por um bando clandestino de jovens que procuravam discretamente cópias escondidas, abandonadas e amputadas dos grandes clássicos. 

Ironicamente muito destes autores são agora alvos de campanhas de cancelamento por não terem sido militantes queer ou descolonizadores profissionais em épocas em que isso não era uma grande opção profissional.

Felizmente estamos longe, no Ocidente, do totalitarismo duma Revolução Cultural Maoista. Mas nas universidades e nos media norte-americanos vemos algumas versões aligeiradas das táticas de condicionamento e purga de uma Revolução Cultural de trazer por casa, explorando a vulnerabilidade frente ao fanatismo organizado das sociedades liberais democráticas. E há sinais preocupantes de que se quer importar estas más práticas para a Europa.

Por identidades livres

Claro que podemos discutir identidades, mudar a linguagem, alterar formas de tratamento. Qualquer bom historiador sabe que isso não é inédito na história, embora nem sempre seja fácil. Sabemos que também abundam sangrentos conflitos identitários, especialmente nas últimas décadas. O que está em causa é como gerir estes temas, pacificamente, numa democracia liberal.

O ponto de partida fundamental é perceber que uma identidade coletiva por definição nunca é apenas uma questão individual, tem um inevitável impacto nos outros, por isso mesmo tem de haver debate e não dogma. No entanto, parece haver quem queira impor uma nova identificação de mulher, sem que as mulheres no sentido tradicional possam ter uma palavra a dizer sobre o assunto. Isso é inclusivo? Ou quem queira impor a noção que todos os homens brancos, hétero e cissexuais (não perguntem, vão estudar se estão interessados) são privilegiados e, por isso, devem ficar caladinhos nestes debates. Isso não é censório?

Eu, por exemplo, sou a primeira pessoa da minha família a ter acesso à universidade, e que apenas pude estudar fora por ter tido um bolsa de mérito. Não creio que possa ser objetivamente identificado como um fidalgo nado em berço d’oiro. Esta ideia de privilégio é absurda quando aplicada à maioria dos homens portugueses que se ficaram pelo 12º ano ou menos, maioritariamente ganham o salário mínimo, e não têm tempo ou dinheiro para tirar um curso nesta nova linguística. Tentar negar esta realidade provoca natural rejeição em quem se sente descaracterizado e insultado como privilegiado e preconceituoso.

Boa sorte para os pronomes e para nós

Eu, fiquem descansados, não me sinto ameaçado por pronomes, a quem aproveito para desejar muita sorte e boa saúde. Mas sinto ser indispensável rejeitar este tipo de discurso intolerante e censório. O problema desta guerra identitária não é que se discuta seriamente as nossas várias identidades, os nossos vários papéis na comunidade. O grande problema são visões exclusivistas e excludentes de identidade que também encontramos no polo oposto da extrema direita populista identitária. Estes são extremos que mutuamente se reforçam. Por isso é fundamental alertar que o passado nos mostra que o triunfo deste tipo de políticas identitárias exclusivistas tende a acabar muito mal.

O que está em causa é que devemos viver e debater as nossas identidades e a nossa linguagem e vivência coletiva como se vivêssemos numa democracia pluralista, para continuarmos a viver numa democracia pluralista. O problema não está em falar-se seriamente de privilégios e injustiças, de violência ou preconceitos. O problema está em querer limitar-se de tal forma a discussão destes temas sérios e complexos que deixa de ser possível um verdadeiro debate livre.

O problema está em se recusar que haja um nós que vá para além destas guerras identidades. Um mundo livre não pode ser a preto e branco. Desde logo porque a cor de pele está longe de ser uma cultura, exceto para racistas ignorantes, e porque as grandes culturas dinâmicas sempre se fizeram de múltiplas apropriações, trocas e cópias, miscigenações e migrações.

Nesses termos não será possível um debate útil sobre as injustiças que ainda persistem na nossa sociedade. Talvez os propagadores sinceros desta noção do homem branco privilegiado tenham a atenuante de circularem em círculos tão elitistas que só conhecem mesmo… homens brancos privilegiados. Mas a solução para isso é alargarem horizontes e conhecerem um pouco mais do resto de Portugal e do Mundo. Um Mundo em que, por sinal, o Ocidente está muito longe de ser a pior região em termos de violência racista ou sexista, bem pelo contrário. Os preconceitos antiocidentalistas primários de muitxs neste suposto combate ao preconceito é outro aspeto que xs descredibiliza.

Observador (PT)

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