A inflação é independente do pênis de Penny Mordaunt (foto), das tranças de uma atriz, ou mesmo da opinião que um economista possa ter em relação à construção de gênero que ocorre antes do parto.
Por José Bento da Silva
Escrevi várias versões deste artigo, até que optei pela parcimónia. Na esperança de que aquilo que é verdadeiramente relevante não passe despercebido. Limito-me, por isso, a listar um conjunto de factos.
Facto número 1. Durante a campanha pela liderança do partido conservador Britânico, uma das candidatas, Penny Mordaunt, fez questão de esclarecer o eleitorado que “uma mulher como ela” (sic) não tem um pénis.
Facto número 2. Penny Mordaunt só foi eliminada como candidata a primeira-ministra do Reino Unido na última ronda de votação dos deputados conservadores.
Facto número 3. A vasta maioria dos deputados conservadores britânicos parece não considerar estranho que os genitais de uma candidata a primeira-ministra sejam um tema político.
Facto número 4. No dia 20 de Julho, após a eliminação de Penny Mordaunt da corrida a primeira-ministra, os deputados conservadores que a apoiaram aventaram a hipótese de o resultado estar associado a uma campanha “venenosa” (sic) contra Penny Mordaunt. Isto é: Penny Mordaunt não perdeu pelo facto de o seu alegado pénis não ser relevante; Penny Mordaunt perdeu porque os outros são venenosos.
Facto número 5. Vários candidatos e candidatas à liderança do partido conservador Britânico, que tentaram centrar a discussão em assuntos não inclusivos como, por exemplo, a inflação, foram eliminados antes de Penny Mordaunt.
Facto número 6. A discussão em torno do pénis de Penny Mordaunt passou despercebida à vasta maioria do comentário político português: os comentadores políticos portugueses, entre eles alguns economistas de alegado renome, como o Professor Aguiar-Conraria, centraram a sua atenção no facto de a construção do género ser um problema que antecede o próprio nascimento do petiz, na gravidade de familiares e amigos manifestarem curiosidade em torno do “sexo” atribuído sem consentimento do petiz e, não menos importante, no drama em torno das tranças de uma actriz que é, dizem-me, famosa.
Facto número 7. As ciências sociais tentaram, com sucesso, diga-se, reconstruir a realidade de acordo com o princípio de que a realidade pode ser aquilo que é descrito por um indivíduo. A realidade passou assim, como que por magia, a ser aquilo que é descrito por um indivíduo. Tal descrição decorre, naturalmente, da forma como o indivíduo atribui sentido ao que experimenta no mundo. Por exemplo, perante a realidade factual de alguém estar morto, um indivíduo pode atribuir significados diversos a essa realidade: um indivíduo pode afirmar que a morte ocorreu devido a cancro; que o cancro é fruto de uma vida a fumar; que filhos de fumadores tendem a fumar; etc.
Facto número 8. Os factos permanecem autónomos em relação à forma como atribuímos sentido aos mesmos. Colocado de forma simples: independentemente de como atribuímos sentido à morte de um indivíduo, este permanecerá morto.
Factos número 9. Os factos têm uma brutalidade à qual dificilmente escapamos. Os factos voltarão, mais cedo ou mais tarde, para nos assombrar. E a interpretação que fazemos de um facto é incapaz de alterar o facto em si.
Facto número 10. Por isso mesmo, a inflação é independente do pénis de Penny Mordaunt, das tranças de uma actriz, ou mesmo da opinião que um economista possa ter em relação à construção de género que ocorre antes do parto. A inflação é um facto carregado de brutalidade; a nossa interpretação dos genitais de Penny Mordaunt não contradiz a brutalidade do preço do litro de gasolina; a alegada apropriação cultural de uma determinada actriz, muito menos; e a opinião de um economista em relação a temas de género não parece ter influenciado o BCE, o qual está prestes a tornar o crédito um pouco mais ‘caro’…
A brutalidade dos factos é amiúde incompatível com a interpretação que fazemos dos mesmos. Infelizmente para muitos, o mundo que imaginaram insiste em não ocorrer… “Let that sink in”…
Observador (PT)