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sexta-feira, novembro 26, 2021

A política do cercadinho VIP e o abismo social

 



Por Edvaldo Santana* (foto)

Há alguns dias, em uma padaria, enquanto aguardava ser chamado pela senha, fiquei diante de um desafio inédito, ao menos para mim. Não era um desafio qualquer, eis que proposto por um ex-aluno, do qual supervisionei o doutorado. Ao olhar um conjunto de fotos contemporâneas, como você descreveria o Brasil? Não entendi muito bem a razão do desafio. Fiquei a pensar por algumas horas. Achei que valia a pena responder à questão formulada, apesar de enigmática.

Em casa, na primeira leitura dos jornais, as fotos mais marcantes, em todos eles, eram das longas filas de pessoas na busca do Auxílio Brasil, que substitui o Bolsa Família. Imagens semelhantes estavam também na TV, com entrevistas.

Reparei, por vários dias, que as diversas fotos são quase que de agrupamentos de pessoas pretas e pardas, seja no Rio Grande do Sul ou na Bahia. O perfil será o mesmo se a fila for de desempregados ou de moradores de rua. Você mesmo pode comprovar.

Essas filas refletem a secular dinâmica da evolução com exclusão, que, numa escolha também racista, nos empurra para o auxílio pobreza ou auxílio miséria. A escolha racista é uma marca cruel, uma tatuagem. A mesma que a Deputada Bia Kicis, certa de sua impunidade, usou para pintar de preto seus ex-colegas brancos.

E é uma dinâmica perversa. Quem passa a noite a guardar seu lugar nesse labirinto humilhante, ainda agradece, com votos, por exemplo, a quem, sem pudor, lhes põe no caminhão da desigualdade, com grilhões a segurá-los, e não é de hoje.

O reconhecimento por fotos, bem a propósito, é a típica fila exclusiva para pretos. Muitos já foram presos ou seriamente constrangidos por conta dessa conduta policial racista, que tem o consentimento da Justiça.

Há fotos que dizem muito sobre a trajetória de um país. Causou angústia a imagem do amontoado em torno da mesa do Congresso Nacional, sobretudo no dia da abertura dos trabalhos, quando lá esteve, em fevereiro de 2021, o Presidente da República. As pessoas eram todas brancas. Nem o Dep. Hélio Lopes, habitual papagaio de pirata do Presidente, apareceu na foto. E a imagem da festa da eleição do Presidente da Câmara? Só de brancos.

Mas a mesa diretora da Câmara tem uma negra, a quarta secretária, e Romário, antigo craque, faz parte da mesa do Senado. Nas chefias das comissões, porém, não notei a presença de um negro ou negra. E é assim há mais 150 anos. Passe em uma das comissões da Câmara ou do Senado. Lá tem centenas de fotos dos ex-presidentes.

Não são diferentes as fotos do Judiciário e do Executivo. Todos os ministros da Suprema Corte são brancos. Em 213 anos, por lá só passaram três negros, como Joaquim Barbosa. E olha que mais de 300 juristas já foram do STF. Nas demais cortes superiores, com quase 90 ministros, só há um negro, e é o único ao longo de toda história. No Executivo, claro, 100% dos 23 ministros são brancos. Nos órgãos de controle, típicos esquadrões austríacos, os negros estão invictos. É que a República precisa aparecer bem na foto, diriam eles.

Dei de cara com fotos dos altos-comandos da Aeronáutica, Exército e Marinha. Somando-os, cerca de 35 oficiais generais. Todos brancos. Quase a perder de 7 a 0, descobri que o chefe do Estado-Maior Conjunto era, até recentemente, negro. Uma surpresa. Abstraindo-se dos uniformes, os oficiais parecem suecos. As fotos, desde os anos 1950, são fáceis de encontrar na internet.

A sublinhar tudo isso, nada como as imagens da Constituinte de 1987, onde apenas nove dos parlamentares eram negros. Só há brancos nas aglomerações em torno da mesa diretora, a festejar ou a trabalhar.

Há fotos bizarras desde o ciclo 1980. Em uma passeata das Diretas Já, até a 10ª fileira só há brancos, quem sabe rodeados por uma corda, a protegê-los. No palanque do mesmo Movimento, apenas pessoas brancas.

Por que é assim? Por pelo menos três séculos as instituições políticas brasileiras, entendidas como as regras do jogo, são majoritariamente não inclusivas. Elas favorecem a criação de instituições econômicas também não inclusivas, que escolhem a fila na qual devem entrar os pretos e os quase pretos, quando deveriam desenvolver mecanismos para retirá-los de lá.

Por que, nessas fotos, o Brasil é tão branco quanto a Dinamarca? Somos conduzidos no estilo cercadinho VIP. Vários cercadinhos, com seus obstáculos racistas. O que muda é o branco distribuidor das pulseiras coloridas. Com frequência, como agora, a função é compartilhada com um ajuntamento de brancos, o Centrão.

Em 70 anos, o total de autoridades lotaria 350 ônibus de 50 lugares. Os negros que chegaram lá, no mesmo período, não lotariam três desses ônibus (menos de 1%). Fiquei a pensar em uma grande foto atual, um cercadão, com as mais de 250 autoridades ditas do primeiro escalão. Apenas duas seriam negras. O cenário poderia ser um circo, mas as piadas seriam de muito mau gosto. Ou um hospício, mas os rejeitados, humilhados estariam do lado de cá, como figurantes no filme de 2ª de nossos destinos. E os diretores e roteiristas são de 3ª categoria.

Em 19 de novembro do ano passado, véspera do dia da Consciência Negra, vi o que representou um raro esforço transformador. Naquele dia, a Folha de São Paulo trouxe a carta (ou petição) de Esperança Garcia, escrava que viveu no Brasil do século XVIII. Ela reclamava ao Governador do Piauí seu sofrimento e de sua família, da tortura física e psicológica. Nem a monstruosidade dos seus algozes conseguiu diminuí-la. Quanta grandeza, mesmo diante de tamanha humilhação. Como sofreram meus antepassados.

A tortura de hoje já não é tão física. O pelourinho é representado pelas sucessivas noites na fila, sob o açoite da humilhação, do abismo social, a síntese do conjunto de fotos contemporâneas.

*Edvaldo Santana é doutor em engenharia de produção e ex-diretor da Aneel. 

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