Os donos das maiores rejeições entre os candidatos ao Palácio do Planalto já traçam estratégias para tentar reescrever a história e edulcorar suas passagens pelo poder.
Por Sérgio Pardellas e Helena Mader
Se hoje o antipetismo e o antibolsonarismo constituem as principais forças políticas do Brasil, isso se deve ao que Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro fizeram ou deixaram de fazer no passado – seja o recente, seja o já um pouco distante. Por isso, os donos das maiores rejeições entre os candidatos ao Palácio do Planalto já traçam estratégias para tentar reescrever a história e edulcorar suas passagens pelo poder. Em outras palavras, passar uma borracha nas práticas que os desabonam e já foram reprovadas pelo eleitor.
Embora o brasileiro seja acusado de não ter uma memória muito privilegiada, sobretudo em se tratando de política, não será uma tarefa trivial. Durante a campanha, Lula será confrontado a todo momento com os escândalos envolvendo seu governo, do mensalão ao petrolão, sua própria prisão por 580 dias pela Lava Jato e a herança maldita de Dilma Rousseff, responsável por legar ao país uma brutal recessão. Já Bolsonaro terá de explicar o rachid do 01, Flávio Bolsonaro, operado pelo ínclito Fabrício Queiroz, as ligações da primeira-família com milicianos da pesada do Rio, a volta da inflação e a trágica condução da pandemia, que resultou em mais de 600 mil mortes. Serão questões inescapáveis a permear toda a campanha.
Em seu esforço para “apagar a história”, no entanto, o PT não pretende dizer que os episódios responsáveis por tisnar a imagem do partido simplesmente não existiram, o que representaria uma ousadia até mesmo para os elásticos padrões petistas. Cientes do que vem pela frente em 2022, Lula e o núcleo político de sua pré-campanha vão usar como arma a tática da distorção da realidade, algo semelhante com o expediente já adotado em 2014 para eleger Dilma Rousseff, só que, desta vez, em doses ainda mais cavalares. Nas reuniões do PT, obviamente, não se fala abertamente em impor uma realidade paralela. São utilizados termos como “disseminação de uma nova narrativa” para “reestabelecer o discurso”. Dentro dessa linha, os petistas vão tentar vender previsivelmente a tese de um Lula “inocente” e “vítima” da perseguição da Lava Jato e do ex-juiz Sergio Moro, hoje seu adversário na corrida eleitoral. Pretendem ainda difundir que o PT é o único partido capaz de criar uma agenda social consistente em favor das camadas menos favorecidas da população e carimbar toda alternativa a Lula como “antidemocrática”. A estratégia é da lavra de Franklin Martins, ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo petista, de cuja cachola nasceu a ideia de financiar blogs sujos para enxovalhar a reputação de adversários políticos e jornalistas independentes. Hoje, Franklin e Lula se falam quase todos os dias. Os dois se reaproximaram desde que Lula deixou a prisão, em novembro de 2019, depois da decisão do Supremo Tribunal Federal de derrubar as prisões após condenação em segunda instância.
Para que o plano dê certo, na avaliação do staff petista, será fundamental evitar desde já produzir imagens que guardem relação com os piores momentos do partido. Com isso, o ex-ministro José Dirceu, condenado pelo mensalão e pela Lava Jato, continuará a trabalhar em favor das alianças regionais nos bastidores, mas evitará aparecer ao lado de Lula diante dos holofotes. O ex-presidente também manterá uma distância regulamentar de Dilma Rousseff, que, nas pesquisas internas encomendadas pela sigla, aparece associada à recessão econômica. Ainda dentro da estratégia traçada pelo PT destinada a “deletar o passado”, uma versão repaginada do “esqueçam o que eu escrevi” de FHC, só que agora com “o esqueçam que eu delinqui” de Lula, o candidato do partido ao Planalto só falará sobre corrupção se for inevitável. Os levantamentos qualitativos da legenda mostram que toda vez que o ex-presidente petista abre a boca para falar sobre o tema, seus índices caem de maneira vertiginosa.
Caberá à presidente do PT, Gleisi Hoffmann, a tarefa de centralizar o assunto, quando necessário. Em recente declaração, a “amante” das planilhas de propina da Odebrecht afirmou que nunca houve “corrupção sistêmica”, superfaturamento ou desvio de dinheiro na Petrobras, como se boa parte desses delitos não tivesse sido confessada pelos próprios criminosos, que devolveram bilhões desviados da Petrobras. O discurso falacioso sobre a inocência de Lula, repetido à exaustão por Gleisi e companhia, também não para em pé. Como se sabe, o STF não absolveu o petista. As condenações foram controversamente anuladas por questões processuais. A corte nem sequer entrou no mérito das acusações. Para sustentar a condenação de Lula pelo tríplex do Guarujá por exemplo, o ex-juiz Sergio Moro elencou 18 provas, incluindo depoimentos, comprovantes bancários, certidões de imóvel, trocas de mensagens e registro em vídeo e fotos de visitas ao imóvel. Restou claro que o petista usou sua influência para favorecer a OAS, de Leo Pinheiro, responsável pela reforma no apartamento, em troca de benefício pessoal – isso sem contar os sinais visíveis de enriquecimento de seus filhos ao longo da era petista.
A retórica que o PT usará daqui até a campanha foi, em certa medida, antecipada por Lula em entrevista nesta semana ao El País. O compromisso fez parte do tour do petista pela Europa, para falar a plateias que não costumam o importunar. Como os jornalistas do periódico espanhol se recusaram a seguir o script acalentado pelo PT, restou a Lula encarnar ele próprio em seu estado puro: sem corar a face, debochou dos fatos, da inteligência dos repórteres que o entrevistavam e do regime democrático. Acabou sendo um tiro no pé. Ao defender a perpetuação no poder de ditadores esquerdistas latino-americanos, muitos dos quais seus amigos do peito, Lula teve a audácia de ombreá-los a líderes de inquestionáveis convicções democráticas. Perguntado sobre as fraudulentas eleições na Nicarágua, que mantiveram no poder o governo ditatorial de Daniel Ortega, Lula o comparou o tirano à primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel: “Por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não?”, perguntou o petista.
“É um anacronismo da esquerda o que Lula representa. É uma esquerda ainda dominada pelo paradigma da revolução cubana, do anti-imperialismo e da defesa radical do nacionalismo contra as economias mais potentes. Esse é um discurso atrasado, dos anos 1960, que não conseguiu captar a globalização”, avalia o historiador Alberto Aggio, professor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista e especialista em América Latina. “Do ponto de vista eleitoral, o Lula atravessou a rua para pisar em uma casca de banana. A maior parte das forças políticas quer derrotar Bolsonaro justamente porque ele representa uma ameaça à democracia. Quando tudo está favorável a esse discurso, Lula comete um erro dessa natureza”, acrescenta Aggio.
Numa outra afirmação descolada do mundo real, Lula disse precisar “voltar” ao poder, “porque todas as pesquisas mostram que o meu governo é considerado o melhor governo que já aconteceu no Brasil”. Ainda na entrevista, atribuiu à prisão pela Lava Jato a um “teste” que “Deus” estava fazendo com ele, como se o que ocorreu na Petrobras e suas relações promíscuas com os chefões das empreiteiras tivessem sido, veja só, fruto de uma missão divina. A julgar pelo que andam falando os estrategistas do partido, esse discurso, com uma adaptação aqui outra acolá, vai prosseguir até a eleição. “Sempre houve essa tentativa de colocar pechas sobre o PT, e os adversários vão continuar fazendo isso porque eles não têm programa para o país, ao contrário do Lula, que tem planos para tirar o povo da miséria, para termos democracia e inclusão social”, diz o líder do PT na Câmara, deputado Bohn Gass.
Enquanto o PT manterá o negacionismo à corrupção do partido e a ditaduras de esquerda, Bolsonaro, que já atingiu um nível de repulsa maior até do que ao PT, seguirá negando que teve qualquer parcela de culpa pela trágica condução da pandemia. Apostando que, em 2022, a propagação do vírus da Covid terá arrefecido, defenderá a tese de que seu governo adotou as melhores políticas para proteger a população. Como se o presidente não tivesse estimulado aglomerações, investido contra o distanciamento social, desestimulado o uso de máscaras, virado garoto-propaganda de remédios ineficazes e atrasado a compra de vacinas porque apostava todas as fichas na propagação intencional do vírus, para obter a “imunidade de rebanho natural“.
Para que a narrativa se espraie pelo país, a ideia é que ministros e parlamentares aliados repisem o discurso nas agendas políticas pelos estados. Irão se revezar na tarefa de enaltecer o que chamam de “realizações” do governo Bolsonaro os ministros das Comunicações, Fábio Faria, do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e da Saúde, Marcelo Queiroga. “Sou o vacinador-geral da República”, disse Queiroga, nesta semana, já bem orientado pelo Planalto. Haverá ainda um investimento maciço em publicidade oficial no ano eleitoral.
A exemplo de seu antípoda de esquerda, Bolsonaro também adotará o discurso de perseguição de setores do Judiciário e da Receita, para justificar os rachunchos de dinheiro público no gabinete do filho 01, Flávio Bolsonaro – ele busca difundir a narrativa que auditores vasculharam indevidamente os dados fiscais de seu primogênito. Recentemente, o processo no Superior Tribunal de Justiça sobre os desvios de salários de servidores do gabinete de Flávio à época em que ele era deputado estadual voltou à estaca zero, depois de um voto emocionado do ministro João Otávio Noronha, o mesmo que beneficiou Fabrício Queiroz com prisão domiciliar e por quem Bolsonaro disse ter tido “amor à primeira vista”.
Sobre o casamento de papel passado com o PL do notório Valdemar Costa Neto, com quem Bolsonaro disse nesta semana que deseja viver “feliz para sempre”, o bolsonarismo já planeja uma outra vacina. A ideia é dizer que a filiação de Bolsonaro foi uma exigência da lei eleitoral e que cada político responde por seus atos. “No Brasil, o eleitor vota na pessoa, não no partido. Esse fato (filiação ao PL) é indiferente para as eleições”, desconversa o deputado federal paranaense Filipe Barros, do PSL. “Não vejo nenhuma chance de que isso mude o voto de alguém. As pessoas sabem o modo de atuar do presidente e sabem que, na política, temos que estar necessariamente dentro de um partido”, acrescenta o bolsonarista.
O plano de tentar deturpar a realidade, conveniente à dupla interessada em polarizar a disputa, já faz parte da retórica de ambos não é de hoje. No apogeu da Lava Jato, em 2016, Lula, já delatado por empreiteiros e operadores que saquearam a Petrobras, teve o desplante de afirmar que era a “alma mais honesta do país”. “Se tem uma coisa de que me orgulho é que não tem, nesse país, uma viva alma mais honesta do que eu. Nem dentro da PF, do MP, da igreja e do sindicato. Pode ter igual”, disse ele, sem ruborizar. Já Bolsonaro, depois de se aliar desavergonhadamente ao suprassumo do que há de mais nefasto na política, o Centrão, e de, em parceria com alas do Judiciário, impor uma série de travas ao combate aos desvios, teve a coragem de dizer que acabou com a Lava Jato porque não haveria mais corrupção no país.
Apesar de pesquisas recentes atestarem que boa parte dos brasileiros não lembra nem em quem votou para Câmara e Senado, o mesmo não se pode dizer dos candidatos a presidente e sobre as políticas adotadas por eles – sobretudo porque muitas delas interferiram diretamente na vida do cidadão. Ou seja, a estratégia do “esqueçam o que eu fiz nos verões passados” pode até colar para alguns fanáticos, convertidos e incautos, mas dificilmente convencerá a maioria da população. As eleições de 2020 foram uma pequena demonstração disso. O PT amargou até um “antipetismo de esquerda”, ao virar coadjuvante em capitais onde costumava reinar, como São Paulo, Porto Alegre e Recife. Em comparação com 2016, o petismo saiu minúsculo do pleito: passou de 254 para 183 prefeituras. A debacle é ainda maior quando se recorda que, em 2012, o partido chegou a comandar 630 municípios. Embora o bolsonarismo não tenha sido derrotado de maneira tão fragorosa como o petismo em 2020, os candidatos que Bolsonaro apoiou pessoalmente não se elegeram – houve situações em que a bênção do presidente até aumentou a rejeição dos aspirantes ao mandato municipal. Mas os efeitos catastróficos da pandemia ainda não tinham ficado tão claros e os brasileiros ainda não haviam sentido o impacto decorrente da alta dos combustíveis e da volta da inflação.
Hoje, com o cenário mais límpido, o presidente passou a registrar a maior reprovação entre todos os candidatos ao Planalto, com 47,7%, seguido por Lula, com 39,9%, de acordo com a pesquisa Futura/ModalMais. Bolsonaro desidrata à medida que ganha força a pré-candidatura de Sergio Moro à Presidência. Pesquisas em poder da campanha do Podemos, novo partido do ex-juiz, mostram que Moro tira votos não só de Bolsonaro como de Ciro Gomes, do PDT, e se consolida com o principal nome da terceira via – um inconteste fato novo com o qual o entourage do presidente ainda não sabe lidar. Provavelmente, apenas fraudar a história, como também quer fazer o PT, apostando que o eleitor é um cretino, não será suficiente para alterar o quadro.
Revista Crusoé