A arte de entrevistar presidentes gritando perguntas em eventos ao ar livre deu ao repórter da Fox uma oportunidade que colegas deixam passar.
Por Vilma Gryzinski
É uma tentação chamar Peter Doocy de “o Jim Acosta de Joe Biden”. Vamos resistir a ela porque é uma falsa comparação. Enquanto Acosta, da CNN, confrontava Donald Trump em tom agressivo, Doocy, o setorista de Casa Branca da Fox, só levanta a voz quando o ruído ambiental, tipo rotor de helicóptero ao fundo, exige. Na maior parte do tempo, principalmente quando está fazendo perguntas a Jen Psaki, a porta-voz presidencial, ele mantém um inalterável e monocórdio tom.
Como é o único a fazer perguntas mais contundentes, Doocy acaba repercutindo nas emissoras concorrentes – ao contrário de Jim Acosta, que se transformou em protagonista, desafiando um dos mais basilares mandamentos dos jornalistas, que é não virar o assunto principal.
Doocy resiste a isso, embora inevitavelmente seja celebrado nos sites conservadores quando consegue emboscar a falante porta-voz. Com 33 anos, vistosa cabeleira loira e maxilar quadrado igual ao do pai, Steve Doocy, um dos apresentadores do programa matinal Fox & Friends (o favorito de Trump, que ligava frequentemente quando estava na Casa Branca), ele tem como maior adversário do momento o próprio ego. Virar estrela do jornalismo de televisão é um teste bravo.
O objetivo de qualquer repórter deveria ser fazer as perguntas que os entrevistados prefeririam não ouvir, mas na vida real a situação é outra. A grande imprensa em peso apoia Biden – alguns diriam até que trabalhou eficientemente por sua eleição – e isso se reflete no comportamento dos jornalistas que cobrem a presidência.
No governo Trump, o presidente só queria falar com a Fox, única representante da direita entre os grandes órgãos – o Wall Street Journal pende para o lado conservador preferencialmente em assuntos econômicos, seu forte.
Agora, a situação se inverteu.
Embora os coleguinhas detestem admitir, todo mundo presta atenção quando chega a vez de Doocy fazer suas perguntas a Jen Psaki na entrevista diária. Numa das mais recentes, ele perguntou, em tom inalterável, se Biden pretendia pedir desculpas a Kyle Rittenhouse por tê-lo chamado de “supremacista branco”.
Rittenhouse é o jovem de 18 anos que matou dois manifestantes na cidade de Kenosha, quando os Estados Unidos estavam pegando fogo com os protestos contra a morte de George Floyd. Fotos, vídeos e testemunhos mostraram que ele agiu em defesa própria, contrariando não só opiniões, mas também informações distorcidas divulgadas pela maioria esmagadora da imprensa (alguns meios chegaram a dizer que os mortos eram negros, num indício de que nem sabiam de quem estavam tratando).
Jen Psaki fez um tremendo jogo de palavras e conseguiu escapar da armadilha sobre o hipotético pedido de desculpa de Biden.
Num mundo hollywoodiana, os dois acabariam se apaixonando – uma ideia não tão absurda assim, uma vez que aconteceu no passado com James Carville, o conselheiro político de Bill Clinton, e Mary Matalin, alta funcionária do governo Reagan e de Bush pai e filho. Na realidade, Doocy e Psaki são casados com os respectivos cônjuges.
A sociedade americana está hoje muito mais partida, com os dois lados da política se comportando como inimigos e não metades divergentes de um debate necessário para a democracia. A imprensa refletiu esse estado de espírito, afastando-se da ética da independência que fez sua glória no passado.
Imprensa não precisa ser imparcial, mas tem que ser justa para honrar os princípios do jornalismo. Ou seja, não deve distorcer fatos em favor de suas simpatias políticas ou partidárias. O caso do dossiê apontando – falsamente – ligações escusas de Donald Trump com o regime russo, promovido com fervor pela grande imprensa, foi o maior exemplo de como a aversão política pode virar distorção jornalística. Ou mentira mesmo.
Curiosamente, Peter Doocy e Jen Psaki já contrariaram esta tendência. Ambos fazem declarações mutuamente positivas e dizem ter um relacionamento amistoso longe das câmeras.
Psaki é combativa, honrando a cabeleira ruiva (descende, numa curiosa mistura, de gregos, poloneses e irlandeses). Na época em que era porta-voz de Hillary Clinton no Departamento de Estado, os russos tentavam ridicularizá-la, comparando suas roupas algo simplórias com o glamour de sua equivalente eslava, Maria Sakharova.
Como pode acontecer com qualquer porta-voz, ela eventualmente descamba para o exagero – um outro modo de chamar inverdades. Recentemente, disse que “nenhum economista” estava preocupado com o aumento da inflação, passando já dos 6%. Pulularam opiniões contrárias. Principalmente, claro, na Fox.
É ruim quando o papel de fiscal do governo, uma das principais atribuições da imprensa, fica praticamente limitado a um único órgão. Mas é bom quando presidentes, seus porta-vozes e os repórteres que falam com eles diretamente não se engalfinham como inimigos, repetindo a agressividade de Jim Acosta contra Trump e vice-versa.
“Eu gosto dele”, já disse Biden sobre Doocy. O presidente tem mais de meio século na política e sabe que mesmo quando não gosta de um repórter, tem que disfarçar.
O pai de Peter Doocy já foi satirizado no Saturday Night Live (“Ele acha hilário”, diz o filho) e a vez do repórter vai acabar chegando. Será a glória.
O que fará Doocy sem Biden? Tem um bom tempo ainda para que isso aconteça. Mas ele é esperto e deve ter visto como os colegas que ficaram órfãos de Trump estão penando. Jim Acosta hoje é um enfadonho comentarista.
Sem um presidente para odiar, os militantes do antitrumpismo na imprensa perderam os dentes. Um chegou a, valorosamente, perguntar qual o sabor do milkshake que Biden estava tomando. Pode acontecer em qualquer lugar.
Revista Veja