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terça-feira, novembro 30, 2021

A alma do PT

 




Por Demétrio Magnoli (foto)

A nota infame do PT que descreveu a “eleição” de Daniel Ortega como “grande manifestação popular e democrática” foi retirada do site para não provocar ruídos eleitorais no Brasil. Mas ela expressa a posição do partido — e o desprezo de dois ex-presidentes, Lula e Dilma, ao sistema democrático.

“Por que Angela Merkel pode estar no poder por 16 anos e Ortega não?”, indagou Lula em entrevista ao jornal El País, reativando um paralelismo cínico que mobiliza desde sempre. Diante da resposta singela da entrevistadora — “ela não encarcerava os opositores”—, o candidato favorito a 2022 simulou recuar, apenas para insistir na falácia de fundo: “Se Ortega detém opositores para que não concorram às eleições, como fizeram comigo, está equivocado”.

A democracia brasileira propiciou que um retirante nordestino, sindicalista metalúrgico, fundador de um partido de esquerda alcançasse a Presidência por dois mandatos. A ditadura de Ortega aboliu a alternância no poder, prendendo as lideranças concorrentes, inclusive os antigos companheiros de esquerda da Frente Sandinista. No Brasil democrático, Lula foi preso por corrupção, mas um Judiciário independente revisou o processo, declarou parcial o juiz que o sentenciou e anulou as condenações. Na tirania nicaraguense, os juízes fazem o que Ortega determina. Mas, segundo Lula, é tudo igual.

Lula repete, como papagaio, os mandamentos de política internacional de Cuba. Contudo, casualmente no mesmo dia, Dilma revelava algo mais: para o PT, democracia é declínio, ruína histórica.

“A China representa uma luz nessa situação de decadência e escuridão que é atravessada pelas sociedades ocidentais.” O diagnóstico de Dilma surgiu num debate de lançamento de um livro de propaganda do “socialismo do século XXI” chinês. Não foi uma observação circunstancial, confinada à economia ou à tecnologia, nem a afirmação óbvia de que o Brasil deve manter relações estáveis com seu maior parceiro comercial, mas algo como um julgamento histórico.

O contexto interessa. De acordo com o autor do livro, “o socialismo é a razão no comando”. Sob tal paradigma, o “debate” enalteceu, especificamente, a “linha justa” imposta por Xi Jinping, ou seja, a expansão do controle do Partido-Estado sobre o setor privado da economia e mais um giro no torniquete da repressão estatal sobre a sociedade chinesa. Ninguém, ali, mencionou Hong Kong — mas celebrava-se a supressão das liberdades políticas na cidade supostamente autônoma. A palavra Xinjiang não foi pronunciada — mas comemoravam-se os crimes contra a humanidade perpetrados na região, onde centenas de milhares de muçulmanos uigures estão internados em “campos de reeducação”.

Lula não vê diferença de fundo entre democracias e ditaduras. Dilma vê, sim — mas julga as segundas melhores.

O “socialismo real”, na sua versão soviética, costumava ser defendido pelos intelectuais de esquerda ocidentais por meio de argumentos que giravam em torno do “poder do proletariado” (em oposição à “democracia burguesa”). O propagandista de Xi inova, ao substituir a antiga alegação por uma invocação puramente tecnocrática: a razão no comando. O Timoneiro da Razão não pode conviver com contestações “irracionais” de partidos, sindicatos ou movimentos sociais. A Dilma que descobriu a “luz” em 2021 mandaria prender o Lula de 1980, líder dos metalúrgicos grevistas do ABC.

O PT nasceu como partido democrático de esquerda. Nos seus anos iniciais, não se furtou a condenar os regimes de partido único na URSS, na China e em Cuba. Há muito, porém, engatou marcha a ré, incorporando o discurso dos antigos partidos comunistas. Não é que o partido pretenda estatizar os meios de produção, instalando uma economia socialista. É que, no plano das ideias, ele renunciou ao princípio do pluralismo político. Nos seus delírios, governaria sem oposição: a razão no comando.

Há consequências. A alma autoritária do PT legitima a alma autoritária da extrema direita bolsonarista, normalizando a noção de que a democracia é um ornamento supérfluo ou, no limite, uma enfermidade de sociedades decadentes.

O Globo

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