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domingo, abril 11, 2021

‘Não existe democracia para indígenas do Brasil’, afirma líder munduruku Alessandra Korap


Korap luta contra garimpo, grilagem e megaprojetos na divisa de PA e MT

Fabiano Maisonnave e Fernanda Mena
Folha

Habitantes da divisa do Pará com Mato Grosso, estados campeões do desmatamento na Amazônia, os mundurukus enfrentam um cenário de guerra. Ao sul do território, a mineração ilegal, feita com maquinário pesado, está destruindo e contaminando centenas de quilômetros de rios e igarapés.

No Médio Tapajós, os mundurukus lutam pela demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu enquanto combatem madeireiros e tentam impedir uma usina hidrelétrica e uma ferrovia para transporte de soja, entre outros projetos de grande impacto. Essa tensão eclodiu na última quinta-feira, dia 25, quando mundurukus ligados a donos de garimpo não indígenas vandalizaram a sede da Associação das Mulheres Munduruku Wakoburun, em Jacareacanga, a 1.150 km a sudoeste de Belém (PA), no Alto Tapajós.

PROTAGONISMO – O alvo não foi acidental. Nos últimos anos, mulheres indígenas vêm ganhando protagonismo, especialmente em oposição à agenda do governo Jair Bolsonaro, que paralisou as demarcações e vem tentando liberar os territórios indígenas para mineração, soja, pecuária, missões cristãs e arrendamento por brancos.

Entre os mundurukus, as mulheres estão na linha de frente da defesa do território de 2,7 milhões de hectares somente no Pará, onde vivem cerca de 13 mil pessoas (há comunidades também no Amazonas e em Mato Grosso).

Uma dessas líderes é Alessandra Korap, 37, da região do Médio Tapajós. Desde 2015, ela divide o tempo entre mobilizações do seu povo, o cuidado dos dois filhos e reuniões com autoridades pariwat (não indígenas). Em uma delas, em abril de 2019, bateu várias vezes na mesa encabeçada pelo então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), para denunciar o atraso nas demarcações e criticar as políticas do governo Bolsonaro.

PREMIAÇÃO – No ano passado, Korap foi homenageada com o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos (EUA). A cerimônia virtual contou com John Kerry, ex-secretário de Estado dos EUA. Via internet, a munduruku conversou com a Folha, da Praia do Índio, aldeia nas imediações de Itaituba (PA), cidade de 101 mil habitantes no Médio Tapajós cuja economia depende do ouro ilegal.

Na entrevista, gravada dias antes do ataque à associação de mulheres, a liderança diz que que sua luta é pelo coletivo, e não feminista. Ela não vê diferenças entre esquerda e direita e afirma que o indígena nunca viveu sob democracia no Brasil porque não é escutado.

Quais são os desafios dos Mundurukus nas frentes em que você tem atuado: demarcação de terra, garimpo e construção da ferrovia?
Na nossa região tem vários projetos, e vi que estávamos perdendo espaço e bem-viver. Antes, a gente ia para a beira do rio pescar ou passar a noite assando castanha. Hoje, a gente não tem mais esse espaço. O território está sendo comprado e tem muito aliciamento. Na Praia do Índio, já aconteceu de empresa querer comprar o cacique. E ele foi sempre resistente.

Agora, falam que a ferrovia [Ferrogrão, que sairia de MT e terminaria a 7 km da Praia do Índio] não vai nos afetar. Vai, sim. A gente já está sentindo isso. Fizeram várias derrubadas para plantar e fazer ponte. Saiu até no Jornal Nacional. Grilagem aumentou bastante.

Hoje, dentro do território Sawré Muybu, tem duas pistas de voo. Por que essas pistas de voo? Por que essas invasões? Eles estão querendo terra de todo o jeito. Porque, quando chega toneladas de soja, precisa descarregar em algum lugar: na barcaça ou no silos, onde se guarda a soja. Aí, na beira do rio, está havendo várias compras de terras.

Quando eles começarem a construir a ferrovia para os portos, vem a usina hidrelétrica para fornecer energia para as empresas. Não é para os índios, não é para ribeirinho, é para as empresas. E quando essa usina instalar energia, aí vai alagar território, vai ter mineração no território, vão acabar com o rio.

Eles falam que nós somos problema. Nós somos problema para defender, sim. Esses não são projetos para a vida. É projeto de morte.

Por que é de morte?
Estão mudando leis para aprovar grilagem e mineração nas terras indígenas. Querem aprovar absurdos. E a gente fica muito preocupado porque nós estamos aqui. Não tem como ir para outro lugar.

Dizem: “Alessandra pode ir morar nos EUA, na Europa”. Eu não quero ir morar em outro lugar. Quem tem que ir embora são as pessoas que estão invadindo, e não nós.

Fizeram um estudo, e a gente sabe que tem mercúrio no sangue da gente. As nascentes acabaram. A gente não conseguia mais encontrar água limpa.

Pessoa vai achar que a Amazônia é verde, é bonita, é cheia de animal. Não! Ela é cheia de problema. Tem garimpo, soja, barragem, hidrovia, grilagem, madeireiros, invasões. Mas o problema mesmo é que o Estado nos abandonou.

Como assim?
Não tem Estado, o governo federal dizendo que vai retirar invasores. Não tem. Há quantos anos a gente está denunciando e nada foi feito? Só que agora a situação piorou. Porque agora eles estão invadindo e postando nas redes sociais que a terra está sendo vendida e que o governo está do lado deles.

A gente, às vezes, tem medo. Eu, sinceramente, tenho medo. Mas o meu medo não é de me calar, não. Eu não consigo me calar. Enquanto eu tiver vida e gente dependendo do território, eu vou continuar lutando. O meu medo é de como meu território vai resistir.

Como você se tornou uma liderança?
Eu era e ainda sou muito tímida. Mas comecei a acompanhar o cacique. Porque eu sabia que nós, mulheres, não tínhamos tanto espaço. Porque mulher engravida, não consegue andar muito, mulher tem que ficar cuidando de criança, cuidar da roça, do marido. Naquele momento, minha mãe me dizia: “Você é mulher, não pode falar. Quem fala são os caciques”. Mas eu sempre fui muito desobediente.

Sempre fui muito rebelde. Eu acompanhava os caciques, e comecei a falar. E os caciques começaram a me dar espaço para falar. E eu fui a fundo nos direitos dos povos indígenas.

Quem me deu apoio foi Maria Leusa, grande liderança do Alto Tapajós [cuja associação de mulheres teve a sede depredada na semana passada]. Comecei a acompanhar ela, a forma dela de lutar. Mas os ataques dos homens contra a gente são muito grandes. Me falaram: “Cuidado. Nenhuma empresa gosta do que tu anda falando. Para eles, é denúncia”. E até hoje eu falo que tá tendo óleo no rio, que tinha muita máquina cavando.

Quando os caciques me colocaram como chefe das guerreiras mundurukus do Médio Tapajós —nossa!—, fiquei muito feliz. Que responsabilidade, né?

O crescimento foi muito grande. Porque a gente está tendo vozes e está falando. Ninguém sabe o que o calado quer. Enquanto eu tiver voz, eu vou falar.

Que tipo de barreira você enfrentou?
Quando resolvi fazer um encontro das mulheres do Médio Tapajós, eu tive barreiras. Os caciques não aceitavam ter encontro de mulheres. “Por que as mulheres vão se encontrar? Do que vão falar?”

Foi um trabalho de formiguinha. Andei pelas aldeias para ouvir as mulheres. Eram muito tímidas. Diziam que tinham de pedir ao marido para ir ao encontro. “Será que os caciques vão gostar?”

Mas elas vieram. E teve os caciques que vieram também. Eles queriam ver o que essas mulheres iam falar.

E a gente fez um encontro muito bonito. As mulheres cantaram, contaram histórias, falaram o que era o território para elas, o que era o rio para elas. Saiu uma carta de resistência sobre a demarcação e contra a usina hidrelétrica.

Mas eu percebi que a luta ia além da hidrelétrica, porque tinha toda uma estrutura que de morte que vem para nosso rio e para nossas aldeias.

Várias organizações indígenas têm hoje mulheres na linha de frente. Esse maior protagonismo das mulheres é proporcional ao aumento da ameaça aos territórios?
De 2015 a 2021, as mulheres avançaram bastante. Hoje tem várias mulheres do Brasil todo falando: a Célia Xakriabá, a Sônia [Guajajara], a Maria Leusa… Teve muito crescimento.

Os homens não podem andar sozinhos porque homens às vezes desviam. E as mulheres, não. As mulheres seguem firmes. Então as mulheres precisam seguir firme junto com os homens porque, senão, o nosso território é entregue.

A nossa comunidade é muito patriarcal: dos homens, dos caciques, dos guerreiros. Mas a gente está mudando aos poucos. Essas invasões mostraram que as mulheres não podem deixar os homens sozinhos.

Quando ganhei o prêmio Robert F. Kennedy [de direitos humanos], foi muito engraçado: todo mundo tinha medo de andar comigo. “A Alessandra é muito barulhenta, briga muito”. Minha tia falou: “Eu fico muito preocupada, mas tenho orgulho de você”.

E o cacique-geral falou: “Hoje, as mulheres têm mais coragem do que os homens. Elas não têm medo de falar. A gente tem de respeitar as mulheres.”

Eu fiquei tão feliz, eu chorava muito. Quem diria que eu ia ganhar um prêmio por estar brigando. Porque, quem briga muito, as pessoas excluem: “Esta mulher não presta, é violenta, é doida”. E eu vi o reconhecimento de que o mundo todo está de olho. Não estou defendendo o rio, o território, a floresta amazônica só para mim. E estou defendendo algo bom para todos.

Por que as mulheres parecem ser mais firmes do que os homens com relação ao garimpo?
O homem, quando vê a caça, ele já pega o arco e a flecha e vai atrás. Não lembra que tem filho do lado. A mulher tem que olhar quem ela vai deixar. Ela vai olhar o filho, vai olhar se o macaco comeu. Ela olha ao redor. E sabe que os filhos dependem do território.

Você ficar bebendo água do rio que, de repente, ficou sujo e contaminado? O governo quer dar água suja para a gente, para nós morrermos mais rápido? Então a mulher tem que brigar e tem que acompanhar os homens. Na hora que eles desviarem, a gente: “Olha, não pode”. As mulheres sabem o que querem, e essa decisão de serem mais claras é pela vida. É pelo território. Sem ele, não há vida.

Como é viver no município de Itaituba, que concentra a maior atividade de garimpo do Brasil, e ser crítica a ele?
Estou no centro da economia do ouro. E vejo que ninguém come ouro, né? Se comesse, a gente estaria numa melhor forma: melhores universidades, hospitais, escolas. E isso a gente não tem.

Eu estou estudando direito. Quando entrei na universidade, eu fiquei pensando: “O que eu estou fazendo aqui?”. Parecia perda de tempo. Mas logo recebi um áudio, dizendo: “Aquela índia que mora em Itaituba está estudando direito. Se ela já é um problema para a gente, imagina quando ela se formar?”. Ficou claro: é importante, sim, eu estudar direito. E hoje eu falo pros meninos: estudem! Quem olha indígena achando que somos coisa do passado, que moramos em caverna, não! Nós estamos avançando cada vez mais.

Fala-se muito em decolonização. O que é isso pra você?
A colonização nunca parou. A igreja está forçando. O próprio governo está forçando missionários a ir para lugares isolados. E a forma de colonizar hoje é por meio da mineração, da igreja, da grilagem de terra, das leis.

Ela está muito forte porque ninguém tirou os invasores do território. A sociedade branca acha que, se usamos roupas e celular, deixamos de ser índio. Não! A gente nunca deixou de ser índio –e falo índio porque colocaram esse nome em nós, mas cada povo é um povo.

Dentro dos mundurukus, tem uma posição de que dá para fazer garimpo pelos indígenas. Em Mato Grosso, os parecis defendem plantar soja por eles. É possível fazer atividades do branco com controle indígena?
Não tem como. Quem compra? Quem fornece? Quem libera? Alguém está com interesse maior. E eles manuseiam os indígenas, dizem: “A sua terra é muito grande, você precisa produzir. Vou dar a máquina para você produzir. Você vai trabalhar sozinho”. Mas o índio ganha porcentagem, o branco não vai dar a máquina de graça.

Não tem como dizer que mineração é bom, que soja é bom. Isso é uma forma de colonização, de dividir o povo. E é isso que está acontecendo. A gente sempre falava que o governo queria dividir a gente, e hoje o governo dividiu. Quando o governo fala, contamina quase todos.

Do ponto de vista dos mundurukus, tem diferença entre direita e esquerda?
Não tem, não. Essas invenções, eu só fui entender quando entrei no movimento [indígena]. Não entendia direita, esquerda, centro, centrão.

Quando comecei a ouvir democracia, até fiquei: “Mas o que é democracia mesmo?”. Eu acho que democracia é aquela que você tem liberdade e opinião. É consultado, é respeitado nos seus direitos. E isso não existe para nós.

Toda aquela luta dos povos indígenas contra Belo Monte [usina construída no governo Dilma Rousseff (PT)], mas ninguém foi ouvido. Existiu democracia? Existe democracia para os povos indígenas? Não existe. Existe uma luta dos povos indígenas para garantir seus direitos.

Eu não sei o que é diferenciar direita e esquerda, eu sei o que é diferenciar que nós sejamos ouvidos: ribeirinhos, indígenas, negros, mulheres. Temos de ter o respeito, ter os direitos garantidos.

O que é a pandemia para os mundurukus e quais os desafios que ela trouxe para os indígenas?
A pandemia é um cauxi [espírito ruim] do homem branco que soltou e veio para o nosso território. Baixou aqui e levou várias bibliotecas.

A gente perdeu muito no ano passado porque nós achávamos que os hospitais iam salvar. Eu senti tanta culpa, sabe? A gente orientou nossos caciques pra não virem pra cidade, usar máscara, limpar sacolas e tudo. Tivemos apoio pra montar cesta básica. A gente sabe que essa pandemia veio testar a gente, mostrar se realmente a gente está cuidando da floresta e do nosso bem viver. E a gente vai continuar a trabalhar com a floresta porque ela é a cura. Então a gente protege pra todos.

Você já sofreu ameaças pelas suas lutas. Como convive com isso?
Em novembro de 2019, a gente fez uma reunião em Brasília com 50 lideranças. Teve audiência sobre o garimpo nos yanomamis com a deputada Joenia [Wapichana, da Rede]. O cacique-geral, Arnaldo Kabá, e eu denunciamos de novo. E tinha lá um deputado do Pará a favor do garimpo.

Dias depois, em Santarém, quando entrei em casa, meu marido disse: “Roubaram a televisão, o celular e o tablet”. Fui olhar a máquina fotográfica e tinham levado só o cartão de memória. Pensei: não foi ladrão normal.

Aí me deu um choque tão grande que eu comecei a chorar. Meu menino me abraçou e disse “mãe, eu não quero que te matem”.

Eu fui para a aldeia, conversei, e as mulheres falaram que era muito importante eu continuar porque elas confiavam em mim.

Hoje, eu estou muito presa, a minha liberdade acabou, mas a liberdade do meu povo não pode acabar. O importante é ver meu povo livre, o meu rio livre e que o território seja demarcado.

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