Posted on by Tribuna da Internet
William Waack
Estadão
É preciso um pouco de paciência, mas a força dos interesses privados brasileiros está conseguindo impor severos limites aos rompantes de política externa do governo Jair Bolsonaro. A “linha” externa foi basicamente subordinar-se a Donald Trump, um erro grotesco do ponto de vista “técnico” de diplomacia e um exemplo já clássico de como a cegueira ideológica conduz a decisões que são pura estupidez.
O agronegócio foi o primeiro a gritar contra a gratuita hostilização de parceiros comerciais no Oriente Médio e na Ásia, seguido de perto por setores modernos industriais e do mundo financeiro em relação a políticas ambientais.
DAR UMA SEGURADA – Os mais novos grupos a entrar no “vamos dar uma segurada” são de setores tecnológicos ligados a telecomunicações e infraestrutura, preocupados com o dano que a hostilidade à China possa trazer a investimentos no 5G.
Especialmente no agro “tecnológico” – aquele que colocou o Brasil como uma superpotência na produção de grãos e proteínas – a postura externa do governo Bolsonaro é vista com consternação e abertamente criticada.
O racha já chegou à relação entre entidades que representam os variados grupos desse setor. Aqueles apelidados de “ruralistas”, e identificados com a soja e a pecuária “primitiva”, continuam apegados à noção de que, sendo o Brasil um campeão na produção de alimentos, não importa o que aconteça ou o que se diga, o mundo continuará comprando aqui.
OUTROS AGENTES – Mas coligação de peso é a que passa pelos bancos, grandes indústrias (química, por exemplo), instituições financeiras (plataformas de investimentos), empresas de ponta no setor digital (aplicação de inovação digital na agricultura, por exemplo), serviços e varejo de massa (por suas ligações com o exterior). Elas se entendem como parte de grandes cadeias internacionais, o que significa levar em grande consideração o que vai pela cabeça de massas de consumidores – e as preocupações de acionistas idem.
Estabeleceram com o presidente do Conselho da Amazônia, o general Hamilton Mourão, uma espécie de interlocução que se faz notar, por exemplo, na maneira como o vice-presidente reagiu ao anúncio de Biden de que retornaria aos acordos do clima de Paris – mais uma vez, a voz de Mourão é abertamente dissonante em relação à de Bolsonaro.
Aliás, na cabeça dos executivos desses grupos a vitória de Joe Biden é vista como uma excelente oportunidade de, pelo menos, restaurar parte das cadeias produtivas globais. E fala-se da China com bem menos hostilidade política.
SEM ISOLAMENTO – Nenhum desses dirigentes admite em conversas particulares enxergar qualquer vantagem no isolamento internacional a que as posturas de política externa de Bolsonaro levaram o País, e simplesmente ignoram o que diz o governo. Olham para os acordos de comércio recentemente assinados na Ásia (abrangendo 30% do PIB mundial e alguns países “ocidentais” como a Austrália, por exemplo) e examinam em grupos nutridos de análise da situação internacional como não perder o bonde (mais um).
Nesse sentido, a anunciada adesão do Brasil à iniciativa americana de “rede limpa” (clean network), que exclui a chinesa Huawei do 5G brasileiro, foi considerada prematura e desnecessária também por militares envolvidos em programas de Defesa – e que não viram na dedicação de Bolsonaro a Trump qualquer vantagem prática em termos de acesso a tecnologias sensitivas (notadamente nos setores nucleares e de mísseis) tradicionalmente bloqueadas por governos americanos, democratas ou republicanos.
FALANDO SOZINHOS – Qual o resultado de tudo isso: será o retorno às deliberações multilaterais (incluindo o acordo de Paris), a moderação na resposta às críticas à política ambiental, mais cuidado no trato com parceiros comerciais importantes na Ásia e Oriente Médio e a reiteração (bem antiga, já) aos que controlam tecnologias de Defesa de que somos internacionalmente “adultos e responsáveis”.
Em outras palavras, é deixar a área externa do governo, incluindo filhos, assessores e alguns ministros de Bolsonaro, falando sozinhos.