Em entrevista ao Congresso em Foco, Fernando Alcântara e Laci Marinho, um casal de sargentos do Exército, dizem que as falas do deputado fluminense são uma reação de uma cúpula conservadora das Forças Armadas que a cada dia se torna mais minoria
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Para Fernando e Laci, sargentos e gays, Bolsonaro é porta-voz de uma minoria da cúpula do Exército que tem uma visão autoritária e conservadora do mundo |
Rudolfo Lago
Laci Marinho, nascido no Rio Grande do Norte há 39 anos, é um sargento do Exército. Fernando Alcântara, pernambucano de 37 anos, é também sargento do Exército. Eles são a prova viva de que o ódio do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) aos homossexuais não é, como ele esforça-se para expressar, um sentimento comum a todo e qualquer soldado das Forças Armadas. Porque Laci e Fernando são, eles próprios, homossexuais. Eles são um casal. “A verdade é que a visão ultrapassada de Bolsonaro reflete hoje o pensamento de uma minoria dentro das Forças Armadas. Mas, infelizmente, uma minoria que tem muita influência”, diz Fernando. Para ele, esse pensamento conservador, resquício da mentalidade de militares mais velhos, que fizeram sua carreira durante a ditadura, é muito forte na cúpula das Forças Armadas, entre os seus comandantes. Na tarde de sexta-feira (1), ele e Laci deram uma entrevista exclusiva ao Congresso em Foco.
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Para Fernando e Laci, Bolsonaro tem sido uma espécie de porta-voz não formal do pensamento dessa elite militar. “Eles armam o circo, e Bolsonaro, o palhaço, se apresenta”, ataca Laci.
Fernando e Laci tornaram-se famosos em agosto de 2008. Na capa da revista Época, eles viraram o primeiro casal de homossexuais a assumir claramente a sua opção. A entrevista que deram à revista foi a forma escolhida pelo casal para denunciar a situação que viviam. Por conta da sua opção sexual, os dois vinham sendo perseguidos. A homossexualidade foi a desculpa encontrada, contam eles, principalmente para calar Fernando. Considerado então um militar de reputação ilibada, com várias condecorações, Fernando tornou-se responsável por uma seção do Exército que autorizava, no plano de saúde, cirurgias de alto custo. Verificou a existência de um esquema de fraudes nessas autorizações. Ao denunciar o fato, ele conta que começou a ser perseguido. “Fizeram uma devassa na minha vida para encontrar fragilidades. E a fragilidade encontrada foi a minha homossexualidade”, diz ele.
Companheiro de Fernando, Laci era mais frágil. Tinha a saúde afetada por um problema neurológico. Iniciou-se um processo para minimizar os problemas de saúde de Laci, para obrigá-lo a trabalhar mesmo doente. Como Laci não conseguia comparecer ao serviço quando estava doente, foi considerado desertor, e chegou a passar 58 dias preso. Por conta da homossexualidade, foi Laci quem primeiro chamou a atenção. Nas suas horas de folga, ele tinha uma banda, onde fazia cover da cantora Cassia Eller. Hoje, ele tenta obter a reforma – aposentadoria – por conta da doença. Já Fernando preferiu desistir de enfrentar um processo disciplinar e deixou o Exército.
Para ambos, sua situação, por mais que os tenha feito sofrer, é o sinal de que as mudanças que acontecem na sociedade refletem-se também nas Forças Armadas. E a agressividade de Bolsonaro é uma reação a essas mudanças. Ou talvez, como sugere Laci, uma reação particular de cunho psicológico. “Tenho plena convicção de que ele é um gay internalizado. Que, sozinho, em frente ao espelho, ele diz: “Eu sou uma bichona!’”.
Na entrevista abaixo, percebe-se que Fernando é mais falante que Laci, mas também bem mais diplomático:
Congresso em Foco - Toda vez que surgem polêmicas como essas das declarações de Jair Bolsonaro, surge a ideia de que a carreira militar é incompatível com a homossexualidade. Como vocês respondem a essa ideia?
Fernando - O deputado Bolsonaro é uma voz remanescente de uma turma que está vinculada a um pensamento ultrpassado, arbitrário, antidemocrático. A questão da opção sexual jamais vai definir o caráter de qualquer profissional, independentemente do ramo de trabalho. O que existe nas Forças Armadas é um grande tabu, vinculado à ideia da necessidade de uma certa virilidade para o combate. Dissemina-se a ideia de que um homossexual não teria a autoridade necessária para o comando.
E isso é verdade?
Fernando - Existem líderes militares históricos, comandantes de grandes exércitos, que eram homossexuais. O caso, por exemplo, de Alexandre, o Grande. A tropa, de um modo geral, conhecia a sua orientação sexual, e isso jamais o impediu de ter grandes vitórias militares. É verdade, era um outro tempo, uma outra cultura. Essa perseguição à homossexualidade cresce com o cristianismo. Mas o fato é que a opção homossexual de Alexandre, o Grande, o não o impediu de ser um grande soldado. Além disso, é uma grande mentira achar que os únicos dois homossexuais no Exército éramos eu e o Laci.
Vocês não são um caso isolado, então?
Fernando - Estamos longe de sermos um caso isolado. O fato de nós dois termos saído do armário, como se diz, não significa que eu deva cobrar o mesmo de outros que não queiram fazê-lo. Mas a gente conhece ene casos de até generais que são homossexuais. Eu já vivi experiências muito desconfortáveis de ter sido assediado dentro da caserna. E nem por isso deixei de obedecer ao comando dessas pessoas. Claro, não se pode aceitar assédio, porque é um comportamento que não cabe em nenhuma profissão. Mas não é pelo fato de ser homossexual que essa pessoa não tenha capacidade de comando.
Há, então, um comportamento hipócrita?
Fernando - E que se torna extremamente autoritário para quem enfrentar a hipocrisia e assumir a verdade das suas opções. As Forças Armadas estão inseridas na nossa sociedade. Não pode prevalecer essa visão ultrapassada de Bolsonaro de uma instituição à parte do resto da sociedade, com regras e leis próprias.
Mas Bolsonaro certamente deve falar por uma parcela da sociedade e das Forças Armadas ...
Fernando - O que eu acredito é que o Bolsonaro queria ganhar exposição. Duvido que ele tivesse mesmo confundido a palavra negra dita por Preta Gil pela palavra gay. Isso é altamente improvável. Ele realmente buscou uma aparição pública. É típico de políticos inescrupulosos como ele. O Bolsonaro é que é o verdadeiro Tiririca. E aqui não quero de modo algum desmerecer o Tiririca. É que o palhaço, de fato, é ele. É claro que existem, sim, débeis mentais – não dá para usar outra palavra – que votam nele. Afinal, me parece que ele já tem sete mandatos. Mas isso precisa mudar. E está mudando.
Mas ainda seria muito forte o preconceito nas Forças Armadas?
Fernando - Quantos comandantes negros nós tivemos? Quantas mulheres em postos de comando? Ninguém. Mas eu acredito que a fala de Bolsonaro hoje é representativa de um pequeno grupo. Mas de um pequeno grupo que ainda tem muita capacidade de influência. Não é muito diferente de como pensam os principais comandantes e generais do Exército. O Bolsonaro funciona como um mal necessário. Ele não reflete o comportamento institucional do Exército que até,por força da disciplina, evita se manifestar em questões polêmicas. Como o Bolsonaro não tem esse compromisso, aciona-se ele. Curioso que o Bolsonaro se diga representante dos militares, enalteça tanto os militares, e já há muito tempo ele não seja um militar.
Ele não seria tanto assim representante dos militares?
Fernando - Não no sentido de realmente discutir e ser capaz de concretizar os anseios dos militares. Por que, por exemplo, ele não discute por que o soldado, na ativa, não possa votar e ser votado? O soldado é cidadão de segunda classe? Por que não discute o absurdo de um soldado ser preso disciplinarmente e não ter direito a habeas corpus? De não ser julgado pela mesma justiça dos demais cidadãos? Por que não discute os códigos militares obsoletos? A questão da remuneração dos militares, cada vez mais aviltada?
Laci – Eu penso que Bolsonaro, na verdade, é um malandro que finge ser representante dos militares para viver de dinheiro público. Como militar, que eu ainda sou, eu vejo que ele é totalmente desacreditado na instituição. Ele é usado pela cúpula para dar esses recadinhos, pra fazer esse auêzinho. Mas, no meio, ele é desacreditado. Acham que ele é um palhaço.
Fernando – A gente fica buscando algo de concreto que ele tenha feito pela família militar, e não acha.
Laci – Ele tem o circo montado. Ele é o palhaço para angariar os votinhos dele. Na verdade, eu tenho plena convicção de que, na verdade, o Bolsonaro é um gay internalizado, um homossexual dentro de uma concha.
Você tem convicção disso? Que o ódio dele aos homossexuais vem daí?
Laci – Ele vê no espelho um homossexual e quer matar, destruir ele mesmo. A voz dele tem que ecoar para os quatro cantos do mundo e dizer: “Eu não sou isso! Eu não sou isso!”. Mas quando ele olha no espelhinho dentro de casa, ele deve dizer: “Eu sou uma bichona!” Ele deve ficar com vontade de quebrar o espelho. Garanto que ele quebrou muitos espelhos na cada dele.
Fernando – Quando você é heterossexual convicto, porque a homossexualidade vai lhe incomodar tanto?
Em contrapartida, como, de fato, repercute no meio militar a situação de vocês? Há apoio a vocês no meio militar?
Fernando – Às vezes, é difícil para a sociedade civil entender o que acontece no meio militar. A obediência no meio militar se dá muitas vezes pelo medo. Um comandante pode mandar prender um soldado por até 30 dias sem dar satisfação a ninguém. Então, as pessoas se retraem. Elas dão apoio velado. Nós sentimos que tivermos um grande apoio, mesmo que velado. E houve gente que se expôs e deu apoio explícito. E pagaram um preço alto por isso. Por exemplo, um major médico que atendeu o Laci e viu que ele estava doente, e que não era verdade a história de deserção, que teve prejuízos sérios por essa posição.
O que pode acontecer com quem claramente se manifesta, por exemplo, a favor de vocês?
Fernando – Há diversas formas de punição, também veladas. Pode-se alegar um outro motivo para punir. Ou mesmo criar dificuldades para a vida do militar. Imagine o transtorno que é para um militar, por exemplo, que está com a sua vida estruturada, filhos na escola, ser de uma hora para outra transferido para outra cidade. Muitas vezes, alega-se a necessidade dessa transferência para punir alguém. E o soldado, para manter a sua vida estável, se cala. É mais fácil a pessoa se acovardar. No caso do Laci, 18 médicos se envolveram para criar a história de que ele era um desertor. Cumprimento do dever não tem outro nome, às vezes, que covardia, não ter coragem de reagir a isso. Por outro lado, se você reage, acontece como está acontecendo conosco. O que eu vou fazer da vida? Eu tenho 15 anos de vida no Exército, com uma ficha considerada irrepreensível, diversas condecorações. Nunca fiz outra coisa. Não sei fazer outra coisa. Então, a gente não pode ser tão taxativo ao condenar quem se cala. Mas não deixa de ser uma forma de covardia.
Quando vocês entraram no Exército, vocês já tinham assumido a orientação sexual de vocês? Como isso surgiu?
Fernando – No meu caso, foi muito difícil a descoberta da homossexualidade. Eu vim de uma família muito católica, muito conservadora. A Igreja é muito perversa nesse sentido, de que tudo é pecado, que se desvia da dita normalidade. Então, no meu caso, essa descoberta durou muito tempo. Quando eu entrei no Exército, eu ainda não tinha essa convicção do que de fato eu era como ser humano. Eu sentia necessidade de experimentar, mas não tinha coragem. O despertar aconteceu já nas Forças Armadas. E o que isso mudou na minha carreira militar? Nada. Isso me traz uma mágoa muito grande. Por que, de uma hora para outra, eu já não era mais o soldado de ficha ilibada, com medalhas por bons serviços prestados à Nação?
E no seu caso, Laci?
Laci – Para mim, foi uma coisa mais natural. Antes de entrar no Exército, já sentia atração por pessoas do mesmo sexo. Na minha juventude, meus relacionamentos eram com mulheres, mas eu tinha atração por homens. Eu não tive problema na cabeça com relação a isso. Se eu gostasse de uma mulher, ficaria com uma mulher. Se gostasse de um homem, ficaria com um homem. Na minha cabeça, era assim.
Na sua cabeça. E na prática?
Laci – Na prática, a gente começou o relacionamento em 1997. Foi o primeiro relacionamento assim.
E a perseguição, como começou?
Fernando – O ano que marcou tudo foi 2006. Desde 2001, o Laci tinha um problema neurológico que o afastava de algumas atividades. Ele tem umas síncopes, umas vertigens, que o atacam de vez em quando. E durante muito tempo, o Exército aceitou isso. Em 2006, ele ficou de cama um bom tempo. Mas, na verdade, a perseguição começou sobre mim.
Sobre você?
Fernando – Eu era gerente de um sistema de saúde que autorizava cirurgias de algo custo. E verifiquei que havia um esquema de fraudes. A coisa foi tomando uma proporção muito grande que saiu do controle. Como começou a crescer, atingir muita gente, começaram uma verdadeira devassa na minha para me atacar. Buscavam um ponto fraco. E o ponto fraco foi a questão da homoafetividade. Antes de nós começarmos a nos relacionar, nós morávamos juntos, numa república. E, embora depois a gente não confirmasse a nossa relação, começaram os comentários. A coisa foi ganhando uma proporção cada vez maior. Aí, para encobrir a corrupção que havia na questão da autorização para cirurgias de alto custo, começou a perseguição. “Tem que perseguir esses dois viados filhos da puta”, como disseram. A coisa começou com punições rotineiras. Chegou atrasado, não fez determinado exercício, etc. A maioria abaixa a cabeça. E isso é a razão dos diversos suicídios que acontecem no meio militar. A diferença é que não abaixamos a cabeça. Ao contrário, fomos cada vez reagindo mais. A gente resolveu enfrentar a situação. E a gente percebeu que a forma melhor de enfrentar era dizer a verdade. Porque a verdade incomoda muito. Então, procuramos a revista Época para explicitar a verdade. Nós já tínhamos procurado o Ministério Público. Mas a justiça é extremamente lenta. Então, nós fomos à imprensa para denunciar nossa situação como forma de nos defendermos.
E isso resolveu?
Fernando - Houve mais perseguição. Houve uma ordem para sermos transferidos, para nos separar. Eu iria para São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, e ele para o estado de São Paulo. A Procuradoria dos Direitos do Cidadão barrou essa transferência. E, aí, diante da doença do Laci, foi mais fácil partir para cima dele. Dizer que não havia doença nenhuma, e caracterizar as ausências dele como deserção. Puniram ele para me calar. Quando a coisa se tornou insuportável, procuramos a revista Época. Nosso relacionamento e a denúncia do que estávamos passando virou capa da revista. Foi aí que eu creio que se armou uma armadilha para nós.
Que armadilha?
Fernando – Nós fomos convidados a ir a São Paulo para dar uma entrevista ao programa de Luciana Gimenez, na rede TV!, logo depois da publicação da revista. O Laci, para o Exército, era tido como foragido, porque ele era classificado como desertor. Para ir para São Paulo, providenciamos a saída por Goiânia, porque se saíssemos por Brasília, Laci seria preso no aeroporto. Nós combinamos rotas de fuga com a emissora para o caso de se tentar cumprir a ordem de prisão de Laci. Mas, ao contrário, enquanto o programa acontecia, a emissora foi sendo cercada. Um aparato extremamente desproporcional. Laci saiu da emissora preso. Ele foi primeiro para um hospitla militar em São Paulo. Mas, no dia seguinte, às 6h do hospital, um helicóptero pousou e nos levou para o aeroporto. De lá, fomos colocados num avião Bandeirantes, de lançamento de tropa de paraquedistas, e não sabíamos para onde nós iríamos. Passa tudo pela cabeça da gente nessa hora. Nos levaram para Belo Horizonte. Eu só fiquei mais tranquilo depois que o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) entrou e nos protegeu. Mas, quando chegou o fim de semana, estávamos já em Brasília, levaram Laci para o quartel. Deram uma surra nele. Tortura. Saco plástico na cabeça. Ficou lá preso 58 dias. Até que o Superior Tribunal Militar mandou que ele fosse solto. Foi uma grande vitória. Abre precedentes para outros casos de deserção, porque há um entendimento firmado de que o desertor tem que ficar 60 dias presos pelo menos esperando o processo. Essa decisão abre precedentes para outras. Enfim, nós tivemos situações constrangedoras, mas muita coisa foi conquistada. Nossa história vai ser levada até maio para a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nossa proposta é condenar o país por esses abusos. Porque o Exército é uma instituição do governo brasileiro. A estrutura governamental foi extremamente condescendente com esse estado de coisas.
O desejo de vocês, ao final do processo, é a reincorporação às Forças Armadas?
Fernando – No caso do Laci, ele ainda é soldado.
Na ativa?
Laci – Estou na ativa. De licença médica, agora.
Fernando – Eu saí. Fui obrigado a sair. Eles começaram um processo de expulsão. Seria um processo demorado. Enfrentar esse processo iria me atrapalhar. Na defesa de Laci. Eu depois escrevi um livro. Eles me deram uma porta de saída. Eu saí.
Laci – No meu caso, há um processo de reforma, por meus problemas de saúde. Eu, normalmente, já deveria ter sido reformado – aposentado – pelos meus problemas de saúde. Mas isso não aconteceu por conta dessa perseguição.
Fernando – O que a gente sofreu, não há dinheiro que pague. Vai ficar marcado para o resto das nossas vidas. O reconhecimento da perseguição homofóbica ajudaria a diminuir esse sentimento de injúria que sofremos. E serviria como exemplo para outros casos não aconteçam. Porque, insisto, o nosso caso não é um caso isolado.
Fonte: Congressoemfoco