Publicado em 9 de março de 2023 por Tribuna da Internet
Luísa Marzullo
O Globo
As revelações acerca dos dois conjuntos de joias recebidos durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) deixaram dúvidas sobre qual deveria ter sido a conduta correta por parte do ex-presidente. Ao longo da história brasileira, a legislação pouco definiu o protocolo para presentes recebidos por parte de autoridades estrangeiras.
Foi apenas em 1991 que uma lei foi criada e, mesmo assim, não tinha como objeto os itens, mas a memória do país, deixando brechas para a subjetividade. Entretanto, historiadores ouvidos pelo Globo afirmam que, no período anterior ao governo de Fernando Collor, sempre houve a conduta moral de que os presentes deveriam ser revertidos para a União.
ERA CORRUPÇÃO… — “Você tinha uma regra tácita: o presidente recebia o presente enquanto figura, que revertia para a comunidade, por mais que não tivesse uma lei ou estivesse na Constituição. Receber de forma pessoal sempre foi encarado como corrupção. Até a legislação ser criada, era uma regra de etiqueta” — afirma Rodrigo Rainha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Após a redemocratização, em 1991, o então presidente Fernando Collor de Mello protocolou uma lei que foi usada de forma interpretativa, por mais de duas décadas, para legislar sobre os presentes.
Assim, dois anos após a primeira eleição direta depois da Ditadura Militar, a lei 8.394/1991 foi criada no intuito de proteger o patrimônio privado dos presidentes da República.
NÃO CITA PRESENTES – A norma legisla sobre os documentos do acervo privado do mandatário. De acordo com o texto, os itens integram o patrimônio cultural brasileiro, e a União teria, por isso, preferência em caso de venda. A lei não cita presentes em nenhum de seus artigos e no 18º dizia que o Poder Executivo iria regulamentá-la em 120 dias, o que só ocorreu de fato em 2002.
Em 2002, Fernando Henrique Cardoso regulamentou a lei 8.394/1991 por meio do decreto de nº 4.344/2002. Esta foi a primeira vez que a expressão “troca de presentes” apareceu na legislação brasileira. O escopo da norma seguiu sendo a preservação do acervo privado independentemente do marco temporal em que tiver sido produzido: antes, durante ou depois do mandato.
No entanto, desta vez, há uma exceção: foram considerados da União os documentos produzidos em “cerimônias de troca de presentes, nas audiências com chefes de Estado e de Governo por ocasião das ‘Visitas Oficiais’ ou ‘Viagens de Estado’ do presidente da República ao exterior, ou quando das ‘Visitas Oficiais’ ou ‘Viagens de Estado’ de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil”.
TCU DECIDIU – A ambiguidade nos textos fez com que, por anos, os membros do Estado brasileiro interpretassem que o dispositivo abrangesse os bens recebidos nas trocas de presentes. Sendo assim, todos os presentes nessas trocas eram públicos, enquanto os demais se tornariam patrimônio privado do presidente. Esta questão se tornou um incômodo apenas em 2016, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) se manifestou.
Em 2016, o TCU, por meio do acórdão de número 2255/2016, reformulou a legislação com base no princípio de moralidade. A partir deste ofício, todos os documentos bibliográficos e presentes recebidos pelos presidentes nas audiências com chefes de Estado, em visitas ou viagens, são patrimônio da União.
Por este motivos, os então ex-presidentes Lula (PT) e Dilma Rousseff (PT) tiveram que devolver 472 bens.
FORMULÁRIO-PADRÃO – Com a nova regra, o procedimento a ser seguido pelo chefe do Executivo em exercício foi determinado pelo TCU: os bens recebidos em viagem devem ser registrados no Departamento de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente da República, acoplado à Diretoria de Documentação Histórica (DDH/PR).
Um servidor vinculado ao mandatário deve preencher os dados de identificação do item no formulário padrão para que ele possa ser devidamente catalogado como parte da União.
No formulário elaborado pelo DDH/PR, a natureza do futuro acervo é definida. Há, inclusive, um campo que questiona se o objeto foi fruto de uma troca de presentes e é preciso explicar como ele foi recebido (em cerimônia ou de forma protocolar). Em seguida, o Gabinete Pessoal deve verificar se as informações conferem. Irregularidades podem acarretar pena de responsabilização pela omissão no cumprimento de dispositivo legal.
OBJETOS PESSOAIS – A exceção se dá apenas aos objetos de natureza personalíssima ou de consumo direto — um conceito vago e interpretativo que varia com o contexto. A avaliação do advogado Thiago Varella, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO) é que, pelo valor do presente oferecido pelos sauditas, as joias não se encaixam nesta categoria:
— Personalíssimo é diretamente ligado a pessoa, não é algo que o presidente recebe enquanto chefe de Estado. Os presentes institucionais são dados ao país e, por isso, pertencem ao acervo do governo. O valor das joias é muito considerável e não poderia entrar nessa categoria, até pelo código de ética do funcionalismo público — explica Varella, se referindo à norma de que todo servidor da União não pode receber vantagem, o que inclui não receber brindes com valor superior a R$ 100.
O ministro Walton Alencar, relator do caso à época, inclusive citou que itens valiosos como uma “grande esmeralda” não poderiam ser enquadrados como bens pessoais.
JUSTIFICATIVA – Imagine-se, a propósito, a situação de um Chefe de Governo presentear o Presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do Presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade — disse à época o ministro do TCU.
Por ter este caráter incerto nas exceções, o TCU recomendou à Casa Civil que novos estudos fossem feitos para aperfeiçoar a regulamentação e os casos de exceção pudessem ser firmados. A orientação não foi seguida.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Excelente matéria, mostra o absurdo que é a apropriação de bens recebidos por presidentes. A melhor declaração foi do professor Thiago Ferreira, que lembrou a proibição de servidor público receber presente com valor acima de R$ 100. Como se sabe, todo presidente é um servidor público, que deve servir à nação e não se aproveitar do cargo para enriquecimento ilícito, por usurpação de bens, como é o caso de Lula, Dilma e Bolsonaro, três perdidos numa política suja, como diria o genial dramaturgo Plínio Marcos. (C.N.)