Democracia no mundo está estável, não em declínio, sugere novo estudo
Por Mayara Paixão | Folhapress
Contrariando uma leva de estudos recentes que afirmam que a democracia vive uma erosão no mundo com a proliferação de líderes autoritários, um novo estudo publicado nos Estados Unidos sustenta que, ao que tudo indica, a democracia está estável —quiçá até mais vigorosa.
De autoria dos pesquisadores Anne Meng e Andrew T. Little, das universidades da Virgínia e da Califórnia, respectivamente, o artigo se intitula "Subjective and Objective Measurement of Democratic Backsliding" (medição subjetiva e objetiva do retrocesso democrático).
O material foi publicado em janeiro como um "pré-print" —ou seja, ainda não foi revisado por outros cientistas, uma etapa importante da produção acadêmica. Mesmo assim, despertou frenesi.
A hipótese levantada por ele é de que índices recentes sobre os níveis de democracia na última década têm sido baseados majoritariamente em critérios subjetivos, influenciados por uma espécie de pessimismo de pesquisadores e avaliadores responsáveis.
Com isso, dizem Meng e Little, uma versão enganosa sobre a resiliência das instituições democráticas ganha força. A dupla reconhece, de todo modo, que há um processo de enfraquecimento democrático em alguns lugares —mas destaca que não é possível afirmar que isso é uma tendência global.
"Não estamos dizendo que não há nenhum retrocesso acontecendo", diz Meng à Folha. "Há cerca de 200 países no mundo; provavelmente em alguns deles líderes então tomando ações antidemocráticas."
Para sustentar sua hipótese, a dupla agrupou índices objetivos para medir a qualidade democrática. Por exemplo, a porcentagem de líderes que estão no poder e se reelegem, a existência de multipartidarismo e a presença ou não de medidas que limitem o poder do líder.
A ideia, em geral, é observar se houve na última década um aumento do princípio básico das democracias: a alternância de poder. Com base nesses indicadores, Meng e Little concluem que não houve retrocesso —os índices seguiram relativamente estáveis nos últimos anos.
Eles dizem que líderes até podem ter tentado desmantelar instituições, mas se fracassaram em conquistar o objetivo-chave de um autocrata —manter-se no poder—, não se pode dizer que há retrocesso. "Alguns já estavam tomando ações antidemocráticas em décadas anteriores", sugere Meng. "Talvez estivéssemos prestando menos atenção. É em parte por isso que as linhas de tendências parecem semelhantes: parte disso esteve acontecendo o tempo todo."
A publicação do pré-print parece ter gerado um debate positivo entre pesquisadores da área. O sueco V-Dem, um dos institutos mencionados no estudo, comentou a hipótese e ainda abriu em seu site uma seção com o tema na página de perguntas frequentes.
O instituto publica anualmente pontuações da democracia e, com isso, classifica países em regimes políticos —a saber, democracias liberais e eleitorais, autocracias eleitorais e ditaduras. Pelo último relatório disponível, sete a cada dez pessoas no mundo vivem em regimes não democráticos.
O V-Dem diz que, embora não existam evidências sobre a hipótese de pesquisadores serem tendenciosos devido a um pessimismo, não é possível descartar esse fator. E que, pensando nisso, o modelo de medição usado já inclui tecnologias para levar em conta que, por vezes, um ou outro pesquisador pode fornecer avaliações tendenciosas.
A Folha procurou a Freedom House e o Polity, os outros dois institutos mencionados nominalmente no estudo de Meng e Little, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.
Para efeitos de comparação, indicadores subjetivos são aqueles mais difíceis de serem respondidos com um sim ou não. Questões como a confiança em resultados eleitorais, por exemplo —pesquisadores costumam ter uma escala de respostas, como "é possível confiar", "houve suspeita de fraude, mas que não alterou o resultado" ou ainda "houve suspeita de fraude que provavelmente se concretizou".
O cientista político brasileiro Fernando Bizzarro, pesquisador associado do WeatherHead Center da Universidade Harvard, destaca que o estudo traz ao debate um paradoxo que já há algum tempo desperta interesse dos acadêmicos da área: "Temos a impressão geral de que a democracia está erodindo no mundo inteiro, mas isso não é capturado nos indicadores objetivos".
Ele, porém, considera prosaica a hipótese sobre a subjetividade. "A evidência não é testada", diz. Para embasar o argumento, Meng e Little trazem dados sobre o aumento do número de pesquisas sobre erosão democrática e reportagens de jornais como o americano The New York Times e sugerem que, hoje, pesquisadores estão inseridos em um ecossistema que fala muito mais disso.
Meng conta que a ideia para o estudo nasceu quando estudava possíveis temas para um novo livro —ela é autora de "Constraining Dictatorship" (Cambridge University Press, 2020), sem edição em português. "Mas, quando fui olhar para os dados, não encontrei essa 'grande explosão' de retrocesso que pensei que veria."
Ela, então, falou sobre o assunto em um simpósio em maio passado no qual também estava Little, que já há algum tempo estuda as tendências de pesquisadores. Meng diz que seu objetivo ao lado do parceiro de pesquisa não é negar o retrocesso democrático, mas alertar para o fato de que muitos dos dados não confirmam isso.
"Queremos encorajar pesquisadores a coletarem dados melhores sobre temas como liberdade de imprensa e liberdades civis, além de pensarem melhor sobre suas definições sobre democracia, que influenciam diretamente no tipo de dado que vão coletar", diz ela.