Ainda que tardiamente, os países da Otan, ao que parece, abandonaram as ilusões e estão adotando estratégias para dissuadir nova agressões russas e enfrentar ameaças da China
Quando a Otan publicou seu último “Conceito Estratégico”, em 2010, a Europa estava em paz e falava-se em “parceria estratégica” com a Rússia. A bonança adquiriu tons de complacência. O então presidente dos EUA, Barack Obama, chegou a caçoar de preocupações dos republicanos com a Rússia: “Alô, os anos 80 estão chamando, querem sua política externa de volta”. Há pouco, o sucessor de Obama, Donald Trump, chamou a aliança militar ocidental de “obsoleta”, e o presidente francês, Emmanuel Macron, disse que ela padecia de “morte cerebral”.
Uma das consequências foi a estratégia “fio de ativação” (tripwire) após a Rússia invadir a Ucrânia em 2014 – pequenos batalhões posicionados no Leste para ativar respostas, mas sem a participação das grandes potências. Pouco antes da Cúpula da Otan, encerrada ontem, a primeira-ministra da Estônia advertiu que, com os atuais planos, as repúblicas bálticas seriam “riscadas do mapa”. O resultado da Cúpula foi o reconhecimento de que, de fato, estes planos eram insuficientes. Agora, a Otan retomou a doutrina da guerra fria.
Muitos historiadores veem a 1.ª e a 2.ª Guerras como duas cenas de um mesmo conflito separadas por uma paz frágil. Ao que parece, a 1.ª guerra fria estava separada da 2.ª por 30 anos de globalização. O retorno se traduziu em quatro anúncios: forças em estado de alerta sete vezes maiores; a primeira base permanente dos EUA no flanco Leste; o convite à Finlândia e Suécia; e um novo “Conceito Estratégico” em que a Rússia figura como “a ameaça mais significativa e direta”.
A prioridade é mostrar ao presidente russo, Vladimir Putin, que o artigo 5.º da Aliança, segundo o qual a agressão a um membro agride todos, é crível. Isso exigirá que os 30 membros cumpram o compromisso de investir 2% do seu PIB em defesa. Hoje, só 9 cumprem a meta, e 19 têm apenas “planos claros” de atingi-la em 2024 – mas a procrastinação, que até agora era a regra, precisará se tornar exceção.
Outras lições da velha guerra fria terão de ser reaprendidas. Mas a nova também traz novos desafios. A Otan adverte para a opacidade das intenções da China; suas “operações híbridas e cibernéticas maliciosas e sua retórica e desinformação confrontacionais”; o controle de setores-chave da indústria, tecnologia, infraestrutura e fornecimento; o uso da economia para criar dependências; a expansão sem transparência de arsenais nucleares; e, finalmente, “a parceria cada vez mais profunda” com a Rússia.
Diferentemente da antiga guerra fria, uma repetição da estratégia de separação entre a Rússia e a China é implausível. As ameaças na Europa e na Ásia estão cada vez mais conectadas. A participação de países do Pacífico, como Japão, Coreia do Sul ou Austrália (todos convidados para a Cúpula), em estratégias de dissuasão da Rússia é tão importante quanto a participação dos ocidentais na dissuasão da China.
As batalhas na Ucrânia são o palco desse drama global. Ironicamente, a reação defensiva da Otan pós-invasão se parece exatamente com a ação ofensiva que Putin acusava e usou como pretexto. Previsivelmente, a Cúpula servirá como um novo pretexto para que ele se vitimize – e prepare novas ameaças.
Putin buscará conquistar o máximo de territórios na Ucrânia para declarar vitória e conclamar o Ocidente a aceitar seus termos em troca de alívio para a fome, a escassez de energia e as ameaças nucleares. Mas apaziguar tiranos é má estratégia. Quanto mais sucesso ele tiver, mais beligerante se tornará. A Ucrânia enfrentará uma agressão permanente e novas agressões serão efetivadas com as mesmas armas, incluindo crimes de guerra e ameaças nucleares. A melhor maneira de evitar outras guerras é vencer esta, com a manutenção das sanções e mais armas para que a Ucrânia possa negociar uma paz condizente com a sua soberania.
Analogamente, a melhor maneira de evitar uma 3.ª guerra mundial é abandonar as ilusões e admitir que – ao menos enquanto Putin estiver no poder e não se viabilizar uma arquitetura de segurança construtiva com a China – o mundo vive uma 2.ª guerra fria.
O Estado de São Paulo